The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

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paupau
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The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by paupau »

Vou aproveitar o lançamento da versão nacional para chamar a atenção da existência deste filme do Carl Theodor Dreyer, um dos mais respeitados cineastas, autor de alguns filmes famosos como o Vampyr - já comentado várias vezes no fórum, A Palavra, Dia de Fúria e Gertrurd, entre outros. Não era um autor prolífico, pois nunca caiu nas graças do público, e como quase toda a sua obra foram fracassos de bilheteira, foi-lhe progressivamente mais dificil angariar o money para o projeto seguinte. A isto junta-se a fama que ganhou junto dos chefes dos estúdios com A Paixão de Joana d'Arc.

Dreyer era um cineasta extremamente exigente em todos os aspetos da produção dos seus filmes, desde a construção detalhada e laboriosa aos sets ao tratamento que dava aos atores, não tendo pejo a sujeitá-los a condições físicas e mentais difíceis para obter o que pretendia. Para este filme construiu um castelo e respetiva aldeia, que raramente aparecem no ecrã devido à forma como o filme é enquadrado e filmado. Rapidamente se espalhou a palavra nos estúdios europeus que Dreyer era um cineasta exigente e que não tirava partido dos sets. A sua ideia era que os atores se sentissem verdadeiramente na Idade Média.
Diversos fatores contribuíram para o estatuto lendário - equiparado apenas por uma mão cheia de outros - que este filme possui hoje, que tentarei comentar mais um pouco em detalhe em seguida: mise en scene verdadeiramente única, foi considerado perdido durante diversas décadas, e acima de tudo, a atuação de Maria Falconetti, quase sempre considerada como a melhor da história do cinema.

A forma como é filmado é, sem qualquer exagero, diferente de qualquer outro filme. O realizador passou imenso tempo a estudar os manuscritos originais do julgamento de Joana d'Arc, o próprio filme abre com a imagem desses volumes. De seguida, vemos Joana a ser apresentada aos seus juízes, até ao desfecho por todos conhecido. Não há aqui façanhas heroicas nem contexto histórico algum. Só nisto o filme aparta-se das outras adaptações, apenas assistimos ao seu julgamento.
O método de filmagem é extremamente invulgar, pois a grande maioria do filme são grandes planos. Há muitos cineastas famosos por explorarem o close up, mas aqui existe algo difícil de precisar que não conhecia de mais lado nenhum, algo de clastrofófico mas intimista ao mesmo tempo, se fosse música era música de câmara. Isto é algo subjetivo, mas não têm nada a ver com um close up do Leone, por exemplo. Só dois cineastas tentaram algo do género do que conheço, Eisenstein e Bergman, e mesmo assim , algo de pontual, não 70 ou 80% da metragem como Dreyer arriscou fazer com este filme. Deixo um ou outro exemplo para entenderem melhor.
Ivan o Terrível
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Persona
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A Paixão de Joana d'Arc
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Mas ao mesmo tempo, há muito trabalho de câmara subtil que passa despercebido se não se estiver realmente atento. Aqui convém respeitar a intenção do autor e ver o filme em silêncio, quer dizer, sem acompanhamento.
Muitos filmes mudos aquando da estreia tinham peças orquestrais a acompanhar, muitas vezes tocadas ao vivo. Mas neste caso particular, o filme ganha outro poder desligando a OST, e deixando-nos envolver na pureza das imagens e emoções evocadas.
Ok, visualmente tanto grande plano deixam uma pessoa exausta e drenada de energia e nesse aspeto é um filme difícil de ver, mas ao mesmo tempo raramente a câmara está estática, há inúmeros tracking shots e movimentos, mas é fácil de uma pessoa se sentir esmagada no meio de tantos grandes planos. Estou-me a repetir, mas quem conhece a obra saberá a que me refiro. E pela primeira vez, o cliché que o cineasta filma as faces como quem filma uma paisagem fez sentido para mim. Com os atores sem maquilhagem, e a notar-se todos os poros em 1080p, alguns movimentos de câmara é como se estivéssemos a observar uma aproximação à superfície lunar. Não faz muito sentido, mas foi o que senti.

Depois, como em muitos outros filmes mudos, a história do filme é rocambolesca e ela própria dava um filme. O filme esteve perdido durante várias décadas, apenas se conhecia fotos de produção e as críticas da altura até finais dos anos 50, quando o Sr. Lo Duca descobriu num arquivo um segundo negativo do filme, constituído por outtakes, e fez a sua própria reconstrução. Esta foi renegada por Dreyer, muito por culpa de não serem os takes por si utilizados, e por utilizar música erudita só composta diversos séculos mais tarde.
No tempo do mudo, as principais produções possuíam quase sempre dois negativos: o doméstico e o de exportação. Isto devido à tecnologia rudimentar da produção de cópias da altura, eram utilizadas duas câmaras lado a lado aquando da filmagem, e assim eram minimizados os danos ao fazer as cópias. Os melhores enquadramentos e takes iam para a versão doméstica (superior) e o resto ficava na versão internacional. Este tipo de práticas desapareceram com o início do sonoro, mas ainda há casos de filmes filmados em mais que uma língua - O Anjo Azul e o Testamento de Mabuse, filmados em inglês, e respetivamente em alemão e francês - isto pelo mesmo cast, pois ainda há os casos de casts diferentes para cada língua, como a Ópera dos Três Vinténs do Pabst.

Este off topic todo para dizer que o que encontrou o lo Duca foi um negativo de outtakes, e que durante uns 30 anos foi a que existia, é inclusive a que Anna Karina vê no Vivre sa Vie do Godard, numa cena plena de significado e que traça o paralelismo entre o martírio de ambas as protagonistas. Nos anos 80,apareceu um negativo da versão original de Dreyer num armário dum hospital psiquiátrico de Oslo(!!). Aparentemente foi um manda chuva da indústria dinamarquesa de filmes que deu uma festa particular numa casa em Oslo e pediu para lhe enviarem uma cópia, onde repousou sossegada durante seis décadas.
Mas gostei bastante de ver esta versão, pois há planos completamente diferentes ou com uma montagem nova, e adoro quando as edições trazem as várias versões para se poderem comparar.

Outro aspeto do tempo do mudo prende-se com os fps. Não eram nem 48 :twisted: nem mesmo 24, mas sim variavam bastante durante uma época de transição, entre 16, 18, 20, 22, até se estabelecerem definitivamente nos 24 fps. Daí às vezes o cliché de tudo andar muito rápido em alguns mudos, uma filme de 16fps projetado a 24 fps desvirtua-o completamente. Uma das razões que me fez adiar a compra da edição da edição da criterion, foi o anúncio da Masters of cinema que iria lançar a versão original 20fps, e com os intertítulos originais em dinarmaquês. Depois de comprar as duas versões incluídas, nota-se perfeitamente como a versão a 24 fps está acelerada.
A atuação de Falconetti faz jus à sua fama, caso quem vê consiga ultrapassar a estranheza formal particular deste filme. Muitos considerarão uma seca monumental em poucos minutos e não verão o excelente trabalho de todos os atores. É desarmante a pureza de espírito mostrada nas respostas de Joana d'Arc perante as rasteiras teológicas que arremessam os seus inquisidores, é uma atuação muito natural e extremamente poderosa à medida que caminhamos para o fim inevitável.

Achei extremamente comovente
quando lhe perguntam quem lhe ensinou o Pai Nosso, ao que responde " A minha mãe" e lhe escorre pela face a primeira de muitas lágrimas
. Só consigo comparar esta atuação com a do filme do Rossellini sobre S. Francisco de Assis, mas aí quem o encarnava era um frade verdadeiro...
Um filme incomparável a qualquer outro e portanto de visão obrigatória.
CC - 174 MoC - 73 BFI - 21
rui sousa
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by rui sousa »

Obrigado pelo "aviso" paupau, é um lançamento sem dúvida para ser aproveitado! :)
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by No Angel »

Ja estou para ver este filme ha bastante tempo, vamos a ver se e agora. A Joana D'Arc e uma das figuras historicas que mais me fascina, e ja vi dois filmes sobre ela: um com a Ingrid Bergman e outro com a Milla Jovovich. Sao os dois bastante diferentes, mas valem a pena ver.
Samwise
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by Samwise »

Este é mesmo daqueles obrigatórios.

Eu vi uma versão das versões musicadas (e penso que fizeram sentido as escolhas dos trechos e oscilações temáticas, porque acentuam a intensidade de alguns momentos), mas depois deste texto acho que vou experimentar a versão "insonora" para ver como resulta. Ainda tenho marcada a experiência de ver o Greed na Cinemateca todo sem um único som e não é coisa que recomende sem reservas... #-)
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by paupau »

Este vi em silencio por ser recomendado pela editora- a opcao principal do menu e mesmo sem ost- por ser a intencao do realizador. Nos filmes mudos quem faz as ost sao sempre a meia duzia de suspeitos do costume, e normamente gosto do trabalho feito. Nao aprecio e o Donald Sosin, esse acabo por desligar, comeca a bombar no piano sem a minima relacao com o que se passa no ecra.

Outro que me lembro de desligar a ost por causa do que recomendava o booklet foi o Diary of a Lost Girl do Pabst. Tinha visto com ost e nao tinha achado nada de mais, mas sem ost deu para apreciar a incivel montagem. Ganhou outra vida.
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by Pedro Pereira de Carvalho »

Tenho curiosidade em comparar este com "O Processo de Joana D'Arc" de Robert Bresson de que tenho a edição da Midas Filmes
http://www.midas-filmes.pt/dvd/catalogo ... joana-darc
Parecem ter o mesmo tipo de abordagem a recriar o processo baseado nos textos existentes, e no caso de Robert Bresson na insistência em usar não-actores profissionais enquanto no caso de Dreyer foram os cenários e vestuários.
Hei de comprá-lo quando baixar o preço.
Pedro Pereira de Carvalho - 56 anos - Lisboa
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by No Angel »

Vi hoje este filme, e fiquei sem palavras. Eu nao sou fa de filmes mudos, mas este filme e sem duvida fantastico! A atuaçao da Maria Falconetti e tao intensa e emocionante, sem duvida uma das atuaçoes mais poderosas do cinema. A musica que acompanhou o filme, denominada Voices of Light, e excelente e ajuda a sentirmos as emoções retratadas nas imagens. 10/10
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by rui sousa »

No Angel, já viste algum dos filmes mudos do Chaplin (e não estou a falar das curtas)? Se não, aconselho-te a veres «The Kid», «The Circus», «A Quimera do Ouro» e «Tempos Modernos». Vale a pena ver, sobretudo se tiver a banda sonora original do Chaplin.
No Angel
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by No Angel »

rui sousa wrote:No Angel, já viste algum dos filmes mudos do Chaplin (e não estou a falar das curtas)? Se não, aconselho-te a veres «The Kid», «The Circus», «A Quimera do Ouro» e «Tempos Modernos». Vale a pena ver, sobretudo se tiver a banda sonora original do Chaplin.
Por acaso o unico que vi dele foi o A Dog's Life, que me lembre :oops:

Obrigado pelas sugestoes. Tenho mesmo que ver outros filmes dele. Ja ouvi falar no The Great Dictator, mas esse nao e mudo, por isso nao conta :-P

Ja vi partes de A Birth of a Nation e de Intolerance, ambos de Griffith. Tenho que ver esses dois um dia destes.
rui sousa
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by rui sousa »

O «The Great Dictator» não é mudo, mas para mim é o melhor filme dele. É fantástico! :)
grayfox
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by grayfox »

rui sousa wrote:O «The Great Dictator» não é mudo, mas para mim é o melhor filme dele. É fantástico! :)
Também é o meu favorito, mas só vi uns 3 ou 4 dele!
Telmo R.
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Re: The Passion of Joan of Arc (1928) - C. Th. Dreyer

Post by Telmo R. »

Este filme é uma obra prima absoluta do Cinema e o seu realizador, Dreyer um verdadeiro mestre.
Falconetti simplesmente brilhante, sem duvida uma das melhores interpretações da história do cinema, senão mesmo a melhor.

Faz-me lembrar também um pouco o Shirin de Kiarostami.
os filmes que vejo: letterboxd ou mubi | a minha colecção de dvds: cine-dvd collection

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