As Ilhas Encantadas (1965) Carlos Vilardebó

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Luis.Manuel
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As Ilhas Encantadas (1965) Carlos Vilardebó

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Há quem não o considere propriamente um filme português, dado ser uma produção luso-francesa de António da Cunha Telles e Les Filmes Number One (Paris) com o apoio finaceiro do Fundo do Cinema Nacional.
Realizado por Carlos Vilardebó, um luso-francês com significativa actividade na area documental este filme de 1965 foi a sua unica longa metragem de ficção, e apesar apesar de bem recebido em Cannes, comercialmente foi um total fracasso.

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O filme, com uma fotografia primorosa de Augusto Cabrita (operador de camara), Acácio de Almeida e Elso Roque (assistentes) sob a direção de Jean Rabier conta uma historia de solidão e de amor passada no século XIX, numa ilha deserta do Atlântico, entre um jovem marinheiro francês (Pierre Clémenti), e Hunila (Amália Rodrigues) uma mulher que ali vivia completamente só, (apenas com vários cães por companhia) depois da morte do marido e do irmão com os quais se dedicava à caça de tartarugas marinhas para extração de óleo. Esta relação idílica e platónica acaba por ter fim quando um veleiro português (o Gazela) passa perto da ilha e Hunila decide partir de regresso ao mundo civilizado.

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O argumento de Carlos Vilardebó, José Cardoso Pires, Raymond Bellour e Jeanne Vilardebó é baseado num conto de Herman Melville "The Encantadas, or Enchanted Isles" incluido na colectânea "The Piazza Tales" publicada em (1856).

Vilardebó que nasceu em Lisboa em 1926 estudou em Paris, e em 1946, estreou-se como co-realizador e trabalhou com Jacques Becker, René Chanas, Pierre Billon, Julien Duvivier, Jean Grémillon, e posteriormente com Agnès Varda. Em 1948, realizou sua primeira curta-metragem, Un dimanche. As suas obras mais conhecidas serão Le cirque de Calder, A Colher Egípcia (La petite cuillère) que ganhou a Palma de Ouro de curta-metragem em 1961, e As Ilhas Encantadas (Les Îles enchantées), sua única longa-metragem rodada em 1965. Apesar do insucesso deste seu único filme de ficção, Vilardebó voltaria ao documentarismo e manteve-se activo até 2004. Morreu em 2019 com 92 anos de idade em Rosellón (Aubais) uma localidade do sul de França onde viveu os últimos anos da sua vida dedicando-se à pintura a aguarela.

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Este peculiar " As Ilhas Encantadas" vi-o pela primeira vez em cinema, numa sessão cultural na minha escola de 2º ciclo algures entre 1968/71 e apesar de muito jovem (e do aborrecimento geral dos meus colegas na sala) fiquei fascinado por este estranho objecto fílmico. Voltei a ve-lo recentemente com uma qualidade boa/razoável (DVD?) numa cópia de origem desconhecida ( da versão francesa?) e agora quase 50 anos depois foi uma experiência tão "interessante" que resolvi registá-la aqui no forum (tal como sei).

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Esteve para ser exibido em Janeiro de 2021 na Cinemateca mas a sessão foi cancelada devido à grave situação de pandemia. A cópia em pelicula foi tratada (quimicamente) e segundo li encontra-se em muito boas condições. Penso que já terá sido digitalizada e aguarda-se (aguardo eu e alguns poucos milhares de fãs espalhados por todo o mundo) que seja editado em DVD pela Academia Portuguesa de Cinema mas na verdade não sei ao certo se faz parte dos filmes escolhidos.

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O filme foi rodado entre Abril e Junho de 1964 nas arribas da costa norte da Ilha de Porto Santo (e não nas Ilhas Selvagens como está escrito em alguns sítios) provavelmente algures entre Fonte da Areia e Praia das Salemas, isto devido ao acesso que permitia o trânsito de veículos da produção a partir do extremo da pista do aeroporto até junto da orla marítima, mas ao certo só mesmo Cunha Telles, o produtor, saberá. Um dos barcos a bordo do qual foram rodadas algumas cenas terá sido o NRP Creoula, um veleiro de quatro mastros, construído no início de 1937 nos estaleiros da CUF, em Lisboa, para a Parceria Geral das Pescarias, sendo em 1979 transformado em Navio de Treino de Mar (NTM) e posteriormente em 1987 colocado sob a tutela da Marinha de Guerra Portuguesa. Mas o importante veleiro que aparece nas cenas iniciais é nitidamente o conhecido Navio Escola NRP Sagres III que entrou ao serviço da Marinha Portuguesa em 1962 e cuja história é mais complexa. https://restosdecoleccao.blogspot.com/2 ... s.html?m=1


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Algumas imagens da rodagem feitas para uma reportagem da RTP >>> https://youtu.be/LWLlvTbIb9Y <<<
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Ficha técnica:

Realização:
Carlos Vilardebo

Assistentes de Realização:
Fernando Matos Silva
Zeni d' Ovar

Argumento, adaptação e diálogos:
Jeanne Vilardebo, Carlos Vilardebo, Raymond Bellour e
José Cardoso Pires na versão portuguesa (não creditado)

Baseado na obra de Herman Melville
"The Encantadas, or Enchanted Isles" incluido na colectânea "The Piazza Tales" publicada em (1856).

Uma produção de:
Les Films Number One e Produções Cunha Telles

Director de Produção:
António da Cunha Telles

Assistente de Produção:
David Quintans, Arsénio Costa, David Quintans e João Pestana

Chefe de Produção:
Maurice Frydland

Secretária de Produção:
Marie Joseph Frydland

Distribuição:
Mundial Filmes, Animatógrafo e SETEC (França)

Director de Fotografia:
Jean Rabier

Operador de Camara:
Augusto Cabrita

Assistentes de Imagem:
Acácio de Almeida e Elso Roque

Música Original:
Philippe Arthuys

Música (pré-existente):
Jean-Sébastien Bach

Execução Musical:
Vasco Barbosa

Guarda Roupa:
Jacques Schmidt

Caracterização:
Carmen Fantun

Montagem:
Sylvie Blanc

Electricistas:
Júlio Sequeira e Jorge Pardal

Iluminação:
Manuel Carlos da Silva

Maquinista:
Carlos Manuel da Silva

Fotógrafo de Cena:
Augusto Cabrita

Cenários: José Silvério Caires [Colaboração na Madeira] · Giovanni Camb [Arranjos Naturais]

Elenco:
Pierre Vaneck (Abrantes), Pierre Clémenti (Pierre), Amália Rodrigues (Hunila), António Polónio (Filipe), Jorge de Sousa Costa (Gonçalves), Guy Jacquet, João Guedes (Faial), João Florença (Jacinto), Cunha Marques, Ricardo Jorge, Jaime Santos 'Jaimery', Belarmino Fragoso, José de Castro e Varela Silva (voz off)

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Imagens da sequência inicial do filme
>>> https://youtu.be/QURpE4qiyiE <<<
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Pierre Clémenti o actor francês que contracena com Amália Rodrigues foi um dos mais requisitados do cinema underground europeu dos anos 60 e 70 e trabalhou também com realizadores como Buñuel, Bertolucci, Visconti e Pasolini. E Amália, tem aqui o seu melhor desempenho (não canta o fado) de toda a sua carreira como atriz (13 filmes), que pessoalmente considero espantoso.
Amália neste filme tem uma beleza rude que confere bastante autenticidade à sua personagem: uma mulher solitária, sofredora mas resiliente, com a pele tisnada pelo sol forte naquela ilha sem sombras.

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Sobre a actuação de Amália neste filme duas opiniões:

«Quem a tenha visto entrar no barco, com solenidade, na sua primeira cena de As Ilhas Encantadas, quem se tenha impressionado com a beleza trágica da sua máscara, poderá compreender, de modo exemplar, como o cinema português tem administrado mal os seus valores, incapaz de descobrir em Amália Rodrigues, a cantora popular, Amália Rodrigues, a actriz cinematográfica de raras potencialidades, Amália Rodrigues, uma fabulous face de intensa fotogenia. Condenada às personagens estereotipadas de fadista, raro lhe foi dada oportunidade para deixar transparecer, no écran, aquele seu porte de cabeça erguida, aquela aristocracia de raça, que não se aprende, aquela figura que, no palco, ao cantar, se avoluma e tudo domina.»

Pavão dos Santos, «Amália e o cinema: fados desencontrados», Sete, Lisboa, 27 de Fevereiro de 1980

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«Se o cinema português não fosse o que é, perdido no oito da pobreza criadora ou no oitenta do excesso intelectual, talvez Amália Rodrigues fosse hoje a grande intérprete de que sempre necessitou. […]. O rosto de Amália, a sua beleza morena, o dramatismo e a sinceridade da sua expressão, o seu jeito de ser natural, acima de tudo, compõem uma figura que na tela ultrapassa a fotogenia pelo lado do encanto emotivo que a presença humana suscita.»

Luís de Pina, «Amália – um rosto para o cinema», O Dia, Lisboa, 7 de Julho de 1980.




Pierre Vaneck (o actor que desempenha o papel do imediato Manuel Abrantes) era filho de um general belga e nasceu em 1931 em Lang Son, na Indochina Francesa. Passou a maior parte de sua infância na cidade de Antuérpia, antes de se mudar para Paris para estudar medicina.Mas depressa abandona esse curso para se dedicar à representação. Frequenta então o curso de René Simon e depois entra para o Conservatório para a classe de Henri Rollan. Estreia-se na peça "Les Trois Mousquetaires" baseada no romance de Alexandre Dumas, em 1952, antes de causar sensação no cinema em 1954 no filme "Marianne de ma jeunesse", de Julien Duvivier. Passa então a alternar a sua actividade no cinema, na televisão e nos palcos. Filma sob a direção de Sacha Guitry "Si Paris nous était conté", ou ainda de Jules Dassin em "Celui qui doit mourir" e na televisão, em séries fantásticas como "La caméra explore le temps" ou "Aux frontières du possible" assim como em "Fabien Cosma" ao lado de Louis-Karim Nébati. No teatro, responde a Fabrice Luchini e Pierre Arditi durante a criação de "Arte", peça de Yasmina Reza. Morre em 31 de janeiro de 2010 após uma cirurgia cardíaca. Era casado com Sophie Becker, filha do diretor Jacques Becker e irmã de Jean Becker.
Rodou três filmes em Portugal: Em 1962 "Vacances portugaises" de Pierre Kast (no Porto Santo), aonde regressa em 1965 para filmar " As Ilhas encantadas" e finalmente volta ao nosso país em 1978 para a rodagem de "Le Soleil en Face" (novamente sob a direção de Pierre Kast), que tem como cenário a bela praia algarvia de Cabanas.


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Foto de Vaneck e sua mulher na praia de Cabanas em 1978



O resultado do esforço feito para produzir este raro filme.

"O fim do projecto de produção de Cunha Telles terá começado logo com a produção de As Ilhas Encantadas (1965, Carlos Vilardebó): apesar de financiamento externo, o filme teve um orçamento elevado e os resultados de bilheteira em Portugal e França foram desastrosos.
A recepção crítica também foi bastante negativa: “(...)
Na altura teve críticas tremendas, então em Portugal foi completamente vaiado, a começar pelo António-Pedro [Vasconcelos] que o 'apedrejou' de todas as maneiras possíveis e imaginárias.“
As Ilhas Encantadas estreou em Março de 1965 noTivoli, em Lisboa e permaneceu apenas a primeira semana em exibição, somando somente 19 sessões.
Segundo o Relatório do Fundo do Cinema Nacional, que cobriu o período entre Março de 1965 e Novembro de 1965, somou como total de receitas de bilheteira uns modestos 58.983$70, correspondendo 57.715$60 (97,85%) às salas de Lisboa e 1.268$10 (2,15%) às salas do Porto"

in "O Novo Cinema Português" de Paulo Cunha (Setembro de 2014)

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Legenda das fotos
Em cima à esquerda duas fotos das Ilhas de Porto Santo e Madeira vistas do mar, à direita o actor francês Pierre Vaneck, em baixo à esquerda Amália num momento de pausa das filmagens e à direita um aspecto das arribas escarpadas da costa norte da ilha bem diferente do lado oposto onde se situa a belíssima praia de areia fina com cerca de 9 km de comprimento e desde há 3 décadas com muito turismo. Em 1965 quando o filme foi rodado a ilha não tinha recursos de água potável que tinha que ser transportada da Madeira em navios tanque e armazenada em cisternas. O aeroporto tinha sido inaugurado em 1960 com uma pista de 2000m, uma pequena areogare e escasso tráfego aéreo. Nessa altura havia pouquíssimas estradas pelo que a logística da rodagem terá sido bastante complicada.



Pandora da Cunha Telles, filha de António da Cunha Telles e uma das produtoras/es deste país com mais trabalhos no currículo (a par de Paulo Branco) não lamenta que o pai tenha produzido As Ilhas Encantadas e refereriu-se numa entrevista recente a esta obra como sendo um belo filme.


Leituras diversas

A maldição das “Ilhas Encantadas” por Jorge Mourinha in jornal "Público" Julho de 2011
A aura maldita de “As Ilhas Encantadas”, estreado em 1965, transcende o cinema e deriva de este ter sido o único papel dramático de Amália Rodrigues. No papel de uma mulher abandonada numa ilha inóspita, a fadista não canta e mal fala, numa personagem que apenas surge já o filme leva uma boa meia hora de duração. Introduzido brevemente pelo seu produtor, António da Cunha Telles — que evocou o desastre comercial da estreia, devido em grande parte à incapacidade do público aceitar Amália num papel tão diferente da sua imagem pública —, o único filme de fundo do luso-francês Carlos Vilardebó é um objecto ferozmente “não-convencional”, como aliás convém a uma adaptação de um escritor tão resistente à narrativa tradicional como Herman Melville. A novela que lhe está na base é uma colecção de “esboços” inspirados pelas ilhas Galápagos, que Vilardebó adaptou a um arquipélago nomeado apenas como “as Encantadas”, com vista a construir uma atmosfera, mais do que uma história.

Esse sensorialismo é visível na deslumbrante fotografia de Jean Rabier, no evidente cuidado posto nos enquadramentos e nas próprias movimentações, altamente estilizadas, dos actores. E é destruído por uma montagem que tenta forçar esse sensorialismo a caber numa estrutura narrativa, sugerindo uma tentativa de “salvamento” do filme durante a pós-produção. A alternativa seria achar que o filme foi literalmente “montado com os pés”, o que implicaria negar a claríssima aposta estética de Vilardebó, curiosamente um homem que fez toda a sua carreira de cineasta no formato curto e que não voltou a dirigir uma longa depois do fracasso desta produção luso-francesa.

Em qualquer caso, “As Ilhas Encantadas” é uma fascinante cápsula do tempo que contém em si o embrião de um grande filme romântico, na relação peculiar construída entre os dois “náufragos” das Encantadas. De um lado, Amália como figura trágica, hierática, de heroína grega como a viúva que o destino abandonou à solidão, sugerindo um talento dramático que o cinema nunca soube explorar. Do outro, Pierre Clémenti como o andrógino marinheiro francês que deserta para lhe fazer companhia, com sugestões de amor e incesto que o filme aflora visual mais do que narrativamente, inscrevendo-se no percurso que o actor - falecido em 1999, aos 57 anos de idade - fez no cinema de autor europeu de Bertolucci ou Buñuel.

O valor das “Ilhas Encantadas” é essencialmente histórico, mas a aura de filme maldito já ninguém lha tira.


Sobre este filme esquecido e maldito escreveu Paul-Louis Martin na prestigiada revista "Cahiers du Cinéma " nº180, de Julho de 1966 ( pp. 71-72) um texto de duas páginas com sugestivo titulo «L’océan des rêves» . (tradução livre resumida) texto original em francês no link https://amaliarodriguescentenario.wordp ... gues-1966/

O arquivo dos Cahiers com as páginas
https://archive.org/details/CahiersDuCi ... 9/mode/2up
“As Ilhas Encantadas” pode ser o sonho de um marinheiro. O filme, em todo caso, tem uma imagem maravilhosa como um sonho perdido que extrai sua substância da memória aristocrática dos primeiros elementos. “O inconsciente marítimo é um inconsciente falado, que se dispersa em histórias de aventuras, mas que não dorme. Ele perde suas forças oníricas. É menos profundo que esse inconsciente que sonha em torno de experiências comuns e que continua nos sonhos da noite dos intermináveis devaneios do dia. A mitologia do mar raramente toca nas origens da fabulação. Aqui expressa-se provavelmente num limite inferior da reflexão bachelardiana sobre a imaginação da matéria, sendo que que Gaston Bachelard é profundamente o que Melville teria chamado de terráqueo. Bachelard pensa nos poetas da terra, na água da terra, na água doce que ele chama de “a verdadeira água mítica”. Sonhar com o mar é para ele um escândalo imperdoável porque o sal é uma perversão: “O sal atrapalha o devaneio, o devaneio da doçura, um dos devaneios mais materiais e naturais que existe”. “O devaneio sempre manterá o privilégio da água fresca, da água que mata a sede.” Ele estava a esquecer-se de Melville […]. Isso porque a obra de Melville oferece uma negação exata da crítica à água salgada: ao mesmo tempo onírica, mítica e fabulosa, mostra claramente que Melville é um sonhador do mar, que Vilardebo, acrescentando-lhe seu próprio sonho, sentiu e traduziu bem, contra Bachelard, no seu primeiro longa-metragem. O devaneio de Vilardebo é triplo: primeiro é um sonho sobre Melville, depois sobre o mar, finalmente sobre a terra ambígua da ilha. Seu filme está decidida e corajosamente fora, emerge de uma poesia diurna além da qual o silêncio único dos objetos forma um ponto alto em direção ao horizonte onde os elementos se fundem no cinza absoluto da dúvida. “As Ilhas Encantadas” são um sonho de Melville: em vez de pegar um romance e adaptá-lo, Vilardebo encontra um autor, Melville, mesmo que isso signifique transformar suas histórias, ou seja, repensá-las de forma a transforma-las pelo cinema. A poesia cósmica de Melville é transposta para imagens. Vilardebo consegue, porém, criar uma espécie de bela e ameaçadora irrealidade, porque não procura criar a ilusão da realidade, mas a realidade da ilusão. […] É também um filme onde o espaço assume a verdadeira dimensão de angústia: a paisagem é um território constantemente novo em que o olhar acaba por voltar, tal como o mar, sempre à praia. O poema adquire sentido quando a história não passa de um infinito incompreensível, até inútil: estamos então diante do poema primitivo[…] Desde o início do filme sabemos que um drama ou uma tragédia vai acontecer. É na praia que acontece, por sua vez, o suicídio do marinheiro, o duelo de honra, a partida de Hunila o abandono dos cães que povoarão as noites da ilha com os seus latidos... A esta admirável (re)criação de Melville, Vilardebo acrescentou muito habilmente um anjo disfarçado de Pierre Clementi. Este anjo é uma tentação: aparece rodeado de luz na brancura da sua inocência, como mais um sonho. Ele veio da água, mas parece ter caído do céu quando o vemos pela primeira vez nas rochas da terra. […] Este filme revela um cineasta no qual o artesão rivaliza com o poeta. […]»


Leonor Areal in "Cinema Português, um país imaginado" Vol. 1, página 402. Edições 70, Lisboa 2011
A sua novidade vem sobretudo de uma apropriação plástica da linguagem cinematográfica, numa história onde as escassas personagens — isoladas nessa ilha e ocupadas com as tarefas de subsistência estrita — poucas palavras trocam. O filme centra-se na figura e na fisionomia escultórica de Amália Rodrigues, que aqui não canta nem quase fala, mas vive por gestos e movimentos corporais que só por si desenham uma ocupação do espaço e uma erótica telúrica e essencial. Ela é a mulher que fica só, depois de mortos o marido e o irmão na pesca da tartaruga. O filme está construído como um desdobrável de vários flashbacks, nos quais surgem outros personagens — viajantes dos mares. Nesta excursão fora do tempo histórico, a apropriação da obra de Melville — e dos trajos vestidos pelos marinheiros ingleses de passagem — serve apenas de pretexto para uma investigação pessoal que, em vez de refletir um tempo histórico suposto, representa, sim, uma espécie de humanidade essencial ou primavera através dos gestos da sobrevivência: a pesca da tartaruga, a transformação das matérias, o engenho técnico e civilizacional, e a manifestação de um erotismo independente de qualquer categoria social ou moral. A atenção central à figura feminina, cheia de força e sensualidade própria, é também uma novidade no contexto português uma cantora que não canta, e apenas a sua fisionomia fala como herança intemporal. Como bem disse Tiago Baptista, o filme revela «o talento de Vilardebó como realizador capaz de construir a enorme carga dramática e psicológica de uma situação e de uma personagem a partir dos mais pequenos detalhes e do quase imobilismo de um corpo» Vilardebó explora sobretudo uma aproximação entre o que é cinema e o que é vida — num ensaio formal sobre o cinema enquanto expressão e revelação da vida, que tem uma perícia inegável e um interesse estético único. A câmara, muito hábil e com uma mise-en-scène de olhar clássico, dá-nos planos longos conduzidos pela gestualidade e grandes planos sustentados nos olhares — tão expressivos quanto as palavras que não são ditas. A plasticidade — que nasce no gosto da paisagem, dos objetos, dos corpos — encontra os ritmos que modelam o tempo de um universo remoto e improvável, para o qual o realizador encontra a atenção justa e os significantes precisos. Deste filme simultaneamente formalista e telúrico pode até dizer-se que é um filme de matéria: a matéria da expressão, aqui tornada matéria da vida, faz a fusão do sensorial com o conceptual cinematográfico. O isolamento humano total tem ecos filosóficos. Um filme quase sem palavras — contado como uma vivência — que propõe uma fenomenologia do cinema.


Uma curiosidade sobre o talento de Agusto Cabrita
Texto de Francisco Simões no Jornal da Madeira em 12/02/2022

"A vida de Augusto Cabrita era uma constante de estética, de sagesse e de mensagens e sons que se colavam nas películas dos seus filmes e fotografias.

Por falar em sagesse recordo as fotografias de filmes como: As Ilhas Encantadas do cineasta Carlos Vpilardebó, Belarmino, o extraordinário filme de Fernando Lopes ou de Hans Christian Andersen, Uma história de Trens, onde o dinamarquês explorava toda a sensibilidade artística do nosso fotógrafo, ou ainda a Catedral da Angústia do nosso comum amigo António Vitorino d'Almeida.

A propósito do magnífico Belarmino, recordo a visita entusiasmante que Francis Ford Coppola fez a Lisboa para ver as imagens e com o intuito de convidar Augusto Cabrita para trabalhar com ele em Hollywood. Augusto e eu levamo-lo ao Barreiro e na pequena Tasca do Compadre obsequiou-o com uns bivalves à Bulhão Pato, poeta do século XIX só conhecido pelos seus dotes gastronómicos e não tanto pela sua poesia, também ele de Almada/Porto Brandão, e com um saboroso vinho branco de Azeitão namorávamos todos o Tejo, Lisboa e Santa Engrácia. Nesse momento Augusto Cabrita respondia a Francis Ford Coppola: não posso ir contigo para Hollywood, preciso estar aqui a namorar Lisboa.

https://www.jm-madeira.pt/opinioes/ver/ ... permanente


(O resumo deste filme mais idiota que já li está numa página, imagine-se só, da RTP. https://www.rtp.pt/programa/tv/p26041

Há uma folha da Cinemateca sobre o filme com uma descrição correcta.


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Um resumo:
Um navio português em viagem pelo Atlântico (o veleiro Gazela) acerca-se do inabitado arquipélago das Ilhas Encantadas.
Um duelo inexplicado na praia.
Um marinheiro abandonado numa ilha inóspita presumivelmente por motivos disciplinares que acaba por se suicidar à partida dos companheiros que o trouxeram para ali, cena em que aparece Belarmino Fragoso, no papel de um marinheiro, que a bordo do barco que se afasta, tenta dissuadir o desterrado a não se matar.
A volta pelas ilhas continua.
Ao passarem ao largo da ilha registada no diário de bordo como Ilha Selvagem os tripulantes reparam em algo estranho na costa e notificam o Imediato que fala com o comandante e este dá ordens para que vá num bote com alguns homens à ilha investigar. À sua chegada surge uma mulher, Hunila, que é levada a bordo à presença do comandante Este interroga-a sobre a sua presença ali naquele local remoto. Hunila, com dificuldade começa a contar a sua história: Ela, o marido e o irmão tinham sido transportados para aquela ilha por um navio holandês a seu pedido para se dedicarem à pesca de tartarugas gigantes e das vísceras delas extraírem óleo, para ao regressarem quatro meses depois, conforme combinado com o comandante do navio holandês, venderem-no para provavelmente para ser utilizado em produtos de cosmética, farmacêutica(?). Um dia os dois homens constroem uma jangada improvisada para se afastarem da costa e caçarem mais tartarugas, mas a agitação marítima desfaz a jangada e os dois morrem afogados. Hunila percorre a costa à procura dos corpos; apenas encontra o do marido ao qual dá sepultura. Por algum motivo desconhecido o navio holandês nunca regressará e Hunila fica sozinha por vários anos, naquela ilha apenas tendo por companhia alguns cães que tinham levado. Um dia um navio francês de passagem visita a ilha e Hunila aproxima-se da tripulação mas não estabelece contacto e retira-se. Um jovem marinheiro, fascinado por aquela estranha figura de mulher solitária procura-a. No momento da partida dos companheiros esconde-se e eles vão embora deixando-o com Hunila. Os dois falam línguas diferentes mas um elo emocional surge entre eles...

O filme foi registado em película Agfacolor de 35 mm e não em Kodachrome como é referido no comentário do IMDb. O sistema Agfa (alemão) tem uma gama de cor menos vibrante que o sistema americano, digamos que mais equibrado, mais natural, segundo o meu ponto de vista, que isto da cor é algo bastante relativo ( e complexo)


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Vilardebó constrói um filme inspirado, com diversas influências (Herman Melville, a Nouvelle Vague e os documentários onde foi bem sucedido) e tendo em conta o pequeno/médio budget ( pelos padrões europeus) de que dispunha para o concretizar, a meu ver, escolheu bem o cenário, os actores, e eventualmente os restantes colaboradores a avaliar pelo que se vê na tela. O seu insucesso dever-se-á ao facto de estilisticamente se afastar bastante do cinema comercial desses tempos, por Amália que não exibe ali o talento que a tornou mundialmente famosa, tendo um papel meramente dramático, ou pelo recurso à voz off, mas principalmente pelo ritmo lento que contrasta com o do Moby Dick dirigido por John Huston (com algumas cenas também rodadas nas costas da Madeira 10 anos antes) com os filmes de grande sucesso comercial dirigidos por Phillipe de Broca por esses tempos (Cartouche, L'Homme du Rio, Les tribulations d'un Chinois en Chine...) ou dos "spaghetti western" que enchiam de público as salas europeias. É nitidamente um filme de autor com todas as virtudes e defeitos que tal implica. Gosta-se ou não se gosta, e eu sou dos que assumidamente gosta. Apesar de não haver fado na sua BSO ele, na sua significação como destino está de certo modo presente não tanto pela participação do ícone mundial desse tipo estilo único de música mas pelos diálogos pausados, pela paisagem desolada, pela história de sofrimento e solidão e até pela saudade do velho marinheiro que, já retirado da navegação recorda a história que viveu (ou sonhou?).

Obs:
A cena em travelling de Hunila a caminhar pelo ao pequeno estaleiro de extração de óleo ao som das cigarras fez-me lembrar uma cena do filme de Sergio Leone, Once Upon A Time In The West, passada no rancho de Brett McBain e a figura de Hunila com o seu xaile aos ombros recordou-me de certo modo a personagem de Jill McBain, ambas mulheres fortes e sobreviventes.


No início do filme o Imediato do Gazela (Pierre Vaneck) envelhecido procura uma gravura das Ilhas para mostrar a um convidado e ao passar no corredor da casa a câmara mostra um mapa da ilha da Madeira na parede.
Como curiosidade adicional um link para um post sobre filmes rodados na Madeira num blog de um madeirense.
http://portugal-mundo.blogspot.com/2017 ... ira-2.html

Fotos do álbum pessoal de Amália tiradas durante a rodagem em Porto Santo, muito provavelmente por Augusto Cabrita, um dos grandes fotógrafos portugueses do século XX

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E já agora uma pequena bio de António da Cunha Telles uma figura-chave deste ousado projecto e o grande impulsionador do chamado "Novo Cinema Português "



António Alexandre Cohen da Cunha Teles GOIH
nasceu no Funchal, Ilha da Madeira em 1935. Entre 1955 a 1960, estudou em Paris, obtendo os seguintes certificados:
- Certificado do I.D.H.E.C. Institut des Hautes Études Cinématographiques em Direção de Cinema e Produção .
- Certificado do Institut de Filmologie, Faculté de Lettres de l' Université de Paris (Sorbonne) .
- Certificado do Centro Audiovisual de l' École Normale Supérieur de St. Cloud.

Depois de regressar a Portugal em 1960, começou sua carreira como produtor com os seguintes filmes, inventando o " Novo Cinema Português " :
" Verdes Anos ", de Paulo Rocha;
" Belarmino " de Fernando Lopes ;
" O Crime da Aldeia Velha ", de Manuel Guimarães ;
"Como Ilhas Encantadas ", de Carlos Villardebó ;
" Catembe ", de Faria de Almeida;
" Domingo à Tarde ", de António Macedo ;
" O Trigo e o Joio ", de Manuel Guimarães ;
" Mudar de Vida ", de Paulo Rocha

E co- produzido :
" Vacances Portugaises ", de Pierre Kast ;
" Le Triangle Circulaire " por Pierre Kast ;
" La Peau Douce ", de François Truffaut .

Dirigido os seguintes filmes :
" O Cerco " , em 1969 ;
" Meus Amigos " , em 1974 ;
"Continuar a Viver" , em 1976 ;
"Vidas " em 1984 ;
"Pandora" , em 1992 ,
"Kiss me " em 2004.

Em 1979, tornou-se administrador do I.P.C. (Instituto de Cinema Português) .
De 1978 a 1982 foi Presidente do Conselho de Administração e Administrador da Tobis - Estúdios e Laboratórios portugueses.
Presidente do Português Motion Pictures Producers Association 1989-1993 .
Gerente de Animatógrafo ( Produção e Distribuição da Empresa ) e Filmes de Fundo ( Companhia de Produção ) .

Como produtor e co- produtor , Cunha Telles é responsável por mais de 200 títulos, entre os quais o único Oscar de Cinema Português História - " Belle Epoque ", de Fernando Trueba , 1993 Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.


Recomendo também a leitura deste interessante texto sobre as por vezes incríveis "peripécias" (desde vender a casa para financiar filmes até comprar película de sobras fora de prazo de validade para poder filmar) deste madeirense, no início da sua carreira de produtor e realizador para levar avante o seu sonho de produzir fitas neste Portugal de então, dominado por uma das últimas ditaduras europeias com um regime de censura que desencorajava os mais persistentes. Clicar em "Ler texto integral" para fazer download do PDF https://www.palavrasemovimento.com › ...PDF
António da Cunha Telles – as produções e as ilusões dos anos 1960

Este filme único de Vilardebó não será de todo uma obra consensual, antes pelo contrário, divide bastante as opiniões que existem sobre ele, mas é sem dúvida algo de único no cinema português e penso que estará na altura de finalmente lhe fazer justiça divulgando-o em formato home cinema numa edição decente dado que teve apenas uma edição VHS em venda directa da editora Imaginação (?) já há muito desaparecida do mercado. Tal contará certamente com o apoio das entidades culturais francesas (?)
E já agora que tal talvez voltar a programá-lo na Cinemateca (e porque nem todos vivem em Lisboa, porque não também na RTP2 ?)

A ficha do filme na página da MARFILMES empresa que será supostamente a detentora dos direitos de autor deste (e de outros filmes portugueses)
http://www.marfilmes.com/pt/ptclassicfi ... ntadas.htm

P.S.: Dada a escassez de informação fidedigna disponível sobre este filme, e a que encontrei para além de muito dispersa é por vezes contraditória, este texto na sua maior parte carece obviamente de confirmação/correção por pessoa avalizada para tal. Caso alguém com conhecimento sobre o tema por aqui passe e quiser corrigir ou comentar sinta-se livre de o fazer. Antecipadamente grato. L.M.
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