No Angel wrote: ↑July 30th, 2019, 6:40 pm
Sim, e não só isso como parecem dois filmes diferentes num só, fica algo muito desconexo.
Mas não, a segunda parte não é melhor nem pior do que a primeira. É diferente. Para mim, é significativo que a personagem principal na segunda parte passe a ser o Joker devido à dualidade de sentimentos nele. Por um lado, ele acaba por adoptar a mentalidade militarista e a atitude bélica mas, ao mesmo tempo, odeia tudo aquilo, incluindo os valores conservadores associados a ela. Por exemplo, numa das cenas em que o Hartman lhe berra aos ouvidos, ele pergunta-lhe se ele acredita na Virgem Maria e ele responde que não. O Hartman passa-se logo da cabeça e "martela-o" mentalmente sobre isso mas ele continua a dizer que não acredita. Esta contradição nele continua durante a segunda parte. No capacete ele tem escrito Born to Kill e no uniforme tem um pin com o símbolo da paz. Ele não é destacado para a Infantaria, por exemplo, mas sim como jornalista de guerra, onde não se esperava que combatessem muito. Mais à frente, na cena dos corpos na vala comum, quando ele é interrogado pelo superior hierárquico pela contradição entre o born to kill no capacete e o símbolo da paz no uniforme, ele refere que tem a ver com o conceito da Dualidade do Homem (de Carl Jung). O homem, claro, não percebe nada do que ele quer dizer e a própria palavra duality não pertence ao léxico dele porque diz "du what?" (parto-me sempre a rir nessa parte). É importante saber o conceito da Dualidade do Homem para se perceber a luta interna do Joker.
Sendo um filme anti-guerra, como o Fear and Desire e o Paths of Glory, o Kubrick mostra uma crítica que era a crítica dele à guerra do Vietname e ao exército mas que é extensível a qualquer guerra. Essa crítica é mais óbvia na primeira parte do filme. Na segunda parte, ela está lá também, só que é mais subtil e acho que reside aí a dificuldade da maior parte das pessoas em apreciarem a segunda parte. A primeira parte é muito tensa e muito intensa e há um crescendo a que depois a segunda parte não dá continuidade. De facto, podem ser considerados dois filmes diferentes. Simplesmente na segunda parte é preciso ficar mais atento aos pormenores do que na primeira, sobretudo ao que é dito nos diálogos.
Como disse no princípio, a segunda parte concentra-se no Joker e é a odisseia dele já na guerra do Vietname. O Joker diz a todos que já esteve anteriormente em situações de combate mas não sabemos se realmente ele esteve ou não. Ele alega que esteve mas não sabemos. Nada no filme nos mostra que ele esteve. É deixado à interpretação do espectador. Eu acho que não esteve. Agora repara logo no princípio da segunda parte quando o Rafterman diz que está ansioso por "trigger time", por "dar ao gatilho". E mais tarde o Joker diz que "a day without blood is like a day without sunshine". Isso também se vê na cena em que ele é entrevistado e diz I wanted to meet stimulating and interesting people of an ancient culture and kill them. I wanted to be the first kid on my block to get a confirmed kill". Essa frase é profundamente reveladora da confusão que vai naquela cabeça. Ele também quer "fazer o gosto ao dedo" e matar uns quantos. É a parte militarista inculcada dentro ele na recruta pelo Hartman a falar. Os outros, que realmente estiveram na "shit", como eles dizem, riem-se dele e um deles diz que lhe falta o thousand yard stare que é uma expressão do jargão militar que significa o olhar vago, sem expressão, distante e apático de um soldado que já não tem empatia, que já não se importa com o horror da guerra que se passa à volta dele e está completamente desligado emocionalmente. Ele adquire esse olhar quase no final do filme, imediatamente após dar o tiro final na sniper vietnamita. Matou um ser humano como ele. Ele que queria ir para a frente da batalha para matar porque via no acto de matar a única coisa que justificava a guerra, teve o que queria e, com isso, desaparece o último resto de humanidade que ele conservou ao longo do filme até momentos antes quando disse ao pelotão que não podiam deixar a rapariga ali a morrer. Aí, para mim, as coisas entram full circle. O círculo completa-se. O Animal Mother é um futuro Hartman, completamente desprovido de sentimentos, de empatia, de humanidade. Por dentro ele é vazio. É um animal, como nós somos, mas irracional, cheio só de instintos básicos e primitivos. Matar, que ele faz de forma implacável (vê a cena no helicóptero em que o Raftman quase vomita de ver o Animal Mother a matar vietnamitas com rajadas de tiros enquanto diz "Get some!") e foder, como se vê na cena com a prostituta vietnamita ("não se preocupem, eu passo os preliminares à frente). Ele hesita uns instantes após o Animal Mother o tentar a fazê-lo, mas o impulso de matar foi mais forte e tomou conta dele... Transformou-se na mesma coisa em que o Pyle se transformou no final do período da recruta. Todo o treino da recruta tem como objectivo aquilo e só aquilo. Matar seres humanos como eles. O clímax da segunda parte do filme é toda a cena da sniper vietnamita mas especialmente a partir da altura em que ela mata o último dos do pelotão do Joker que ela consegue matar. A loucura de toda aquela situação e como aquilo vai corroendo, corroendo até destruir totalmente a unidade do pelotão, ao ponto de todos desobedecerem à ordem de retirar (que era o que deviam ter feito). Repara como ainda antes é precisamente o Joker (e não os outros) que vê a sniper e que aponta para a matar mas acontece a feliz coincidência de a pistola ter ficado encravada. Matar, de facto, não fazia parte da natureza dele, ainda que ele tivesse sido treinado para isso na recruta.
Outro momento em que se vê com particular acutilância a crítica do Kubrick é na cena em que o soldado do batalhão do Cowboy mostra o cadável do soldado do Viet Cong que ele matou, deitado na cadeira e o diálogo dele que revela um grande sadismo.
Experimenta rever o Full Metal Jacket mas só a partir da segunda parte.