Desabafos... (Off-TopiC)

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Samwise
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

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Luis.Manuel wrote: January 2nd, 2023, 6:07 pm Há 29 anos atrás o prestigiado jornal New York Times publicou um artigo a menosprezar o cinema europeu (e a defender obviamente o cinema americano).
O cineasta Martin Scorsese respondeu-lhes com a seguinte carta:

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Muito bom! Continua actual na essência da mensagem (e se calhar mais relevante do que então).
«The most interesting characters are the ones who lie to themselves.» - Paul Schrader, acerca de Travis Bickle.

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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

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A propósito de uma troca de ideias decorrida aqui no tópico há uns dias atrás, lembrei-me enquanto estava a ler este texto do João Lopes no DN...

https://www.dn.pt/opiniao/-3488-especta ... 79445.html

3488 espectadores para Steven Spielberg


No primeiro fim de semana de exibição nas salas portuguesas, o filme Os Fabelmans, de Steven Spielberg, foi projetado em 65 ecrãs, num total de 354 sessões, tendo sido visto por 3488 espectadores, isto é, com uma frequência média por sessão inferior a uma dezena de pessoas (dados oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual). Há outra maneira de dizer isto: Os Fabelmans está a protagonizar um aparatoso desastre comercial.

Que é feito, então, do nome "Spielberg" como símbolo sem fronteiras do próprio cinema? Como entender que um objeto com tanta visibilidade mediática - incluindo uma fortíssima cobertura jornalística e crítica - possa suscitar tamanha indiferença? Onde estão os espectadores que, ao longo de décadas, acompanharam Spielberg através de títulos tão diversos como E.T., o Extraterrestre (1982) e A Lista de Schindler (1993), sem esquecer os vários episódios das aventuras de Indiana Jones?

Se o leitor me seguiu até aqui, permita-me que o avise que não encontrará nos parágrafos que se seguem quaisquer considerações sobre aquilo que seria o "gosto" do público. Desde logo, por uma razão rudimentar: não existe público, mas sim públicos, plenos de contrastes e contradições - os espectadores não são uma massa amorfa que se mova impulsionada por um qualquer "gosto" unificado, ou sequer legível de forma imediata a partir de números de bilheteiras. Além do mais, "explicar" a presença de espectadores nas salas através das abordagens críticas dos filmes (num sentido ou noutro) é um disparate argumentativo que conheço, com poucas variantes, há meio século e não tenho dúvidas sobre o seu objetivo único: difamar todos os modos de abordagem jornalística dos filmes, rotulando-os de irresponsáveis.

Justamente, há algumas formas de responsabilidade que nunca são contextualizadas. A começar por aquelas que envolvem os agentes do mercado. É curioso, de facto: alguém que escreva alguns poucos milhares de caracteres sobre um determinado filme continua a estar sujeito a que o seu ponto de vista ("positivo" ou "negativo") seja rotulado de causa "metafísica" da vida comercial de um filme; ao mesmo tempo, as empresas que gastam milhões na definição de padrões de produção, promoção e difusão do cinema são implicitamente ilibadas de qualquer responsabilidade na vida pública dos filmes.
3488 espectadores para Steven Spielberg

O assunto é delicado, reconheço, quanto mais não seja porque a noção de responsabilidade é fraca neste tempo em rede, dito "social", em que vivemos. Confunde-se responsabilidade e culpa. Para mais, uma culpa enraizada numa noção mecânica e instrumental de causa e efeito - como os golos do futebol resultantes de vários ressaltos dentro da área, tudo numa inefável fração de segundo, que alguns analistas conseguem explicar pela "culpa" de um desgraçado defesa que se desviou da posição que o treinador lhe tinha atribuído...

Não se trata, por isso, de promover qualquer tipo de tribunal "popular". Até porque importa reconhecer que o descalabro comercial de Os Fabelmans está longe de ser um drama meramente português - se consultarmos os respetivos números nas salas dos EUA poderemos verificar que, proporcionalmente, os resultados são muito semelhantes.

Permito-me, por isso, recuar uma década, a um texto que escrevi no dia 25 de setembro de 2012, tendo como primeira fonte de informação alguns dados divulgados pela revista Time (sobre os filmes desse verão). Recordo: "(...) vale a pena sublinhar que um dos sintomas mais significativos da atual crise global do cinema decorre, precisamente, do sucesso dos... blockbusters. Porquê? Primeiro, porque a sua dominação estreita a diversidade de oferta dos mercados, impedindo filmes mais "pequenos" (não poucas vezes, com importantes potencialidades comerciais) de encontrarem os seus públicos. Depois, porque é uma ilusão julgar que os números gigantescos de determinadas performances de alguns filmes revelam, necessariamente, uma grande vitalidade do mercado. Informação sintomática, há algum tempo a circular em diversos sites americanos: durante o verão de 2012, nos EUA, venderam-se menos 100 milhões de bilhetes do que na mesma estação, há dez anos. Ponto a ter em conta: os megassucessos escondem a realidade muito crua de um mercado que, se não se repensar (a nível global), vai reduzir cada vez mais a base regular de espectadores - ou a base de espectadores regulares."

"A nível global"... A situação em Portugal não passa de um microscópico sintoma que, em qualquer caso, não pode ser isolado de uma demissão nacional e internacional, nomeadamente europeia. Que demissão? Demissão política, entenda-se, recusa de pensar o que possa ser um mercado nacional realmente dinâmico e criativo na conjuntura globalizada em que o cinema existe. O que, entenda-se também, não decorre de um qualquer juízo "generalista" sobre o cinema dos EUA - direi apenas que, a meu ver, é daí que provém uma parte muito significativa do melhor cinema contemporâneo (mas, aqui, a questão não é essa).

Os efeitos da pandemia e o crescimento das plataformas de streaming não bastam para compreender o que está em jogo. Acontece que, a partir de 2008, com o lançamento de Homem de Ferro, a vaga de blockbusters de super-heróis, com inevitável destaque para os que ostentam a chancela Marvel (propriedade dos estúdios Disney), gerou um modus operandi que as empresas que lidam maioritariamente com a produção americana não arriscam questionar. Dito de outro modo: conscientemente ou não, essas empresas parecem trabalhar no pressuposto de que tais filmes são o fator dominante (ou mesmo o único fator) de sustentabilidade do mercado.

O fracasso comercial de Os Fabelmans é apenas (mais) um episódio que revela a desagregação de uma base de espectadores que possa existir (como já existiu), não em função dos milhões de dólares que a Marvel vai investir na sua próxima promoção, mas através de um gosto aberto à pluralidade do próprio cinema. Será preciso acrescentar que, neste caso, a palavra "gosto" reflete, não a venda de muitos ou poucos bilhetes, mas uma genuína disponibilidade para o conhecimento daquela pluralidade?

Tudo isto pode configurar uma forma de implosão do próprio sistema enraizado em Hollywood: os investimentos em meia dúzia de títulos com megaorçamentos (e megapromoções) afetam de forma drástica a vida dos filmes mais "pobres", impedindo-os de estabelecer uma relação saudável, não induzida pelo marketing, com os espectadores. Ponto a ter em conta: quem começou por usar a palavra "implosão" para alertar para tal possibilidade não foi um crítico de cinema. Foi, sim, Steven Spielberg na cerimónia de inauguração da Escola de Artes Cinematográficas da Universidade da Califórnia do Sul. Quando? No dia 12 de junho de 2013.
A resposta simples (e reconhecidamente simplista) que tenho para oferecer é: o maioria do público a nível global NÃO tem cultura cinéfila, NÃO segue realizadores e NÃO faz a mais pequena ideia do que significa a "teoria do autor", e não penso que estejamos particularmente pior nesse capítulo do que estávamos há 20, 30, 40 ou 50 anos. Ou seja, estar lá Spielberg ou não estar vai dar quase ao mesmo no que respeita à bilheteira, mas se estiver uma "grande pipocada" em perspectiva à mostra no poster, como uma quantas que o Spielberg realizou, então já não vai.
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Luis.Manuel
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

Post by Luis.Manuel »

Samwise wrote: January 2nd, 2023, 7:20 pm A propósito de uma troca de ideias decorrida aqui no tópico há uns dias atrás, lembrei-me enquanto estava a ler este texto do João Lopes no DN...

https://www.dn.pt/opiniao/-3488-especta ... 79445.html


3488 espectadores para Steven Spielberg


A resposta simples (e reconhecidamente simplista) que tenho para oferecer é: o maioria do público a nível global NÃO tem cultura cinéfila, NÃO segue realizadores e NÃO faz a mais pequena ideia do que significa a "teoria do autor", e não penso que estejamos particularmente pior nesse capítulo do que estávamos há 20, 30, 40 ou 50 anos. Ou seja, estar lá Spielberg ou não estar vai dar quase ao mesmo no que respeita à bilheteira, mas se estiver uma "grande pipocada" em perspectiva à mostra no poster, como uma quantas que o Spielberg realizou, então já não vai.
..........

Não poderia estar mais de acordo.

E o problema infelizmente estende-se a outras actividades culturais como por exemplo a edição de livros que está nas ruas da amargura, não pela falta de talentos, mas por falta de hábitos de leitura que obrigam a tiragens tão reduzidas que já só são "viáveis" por terem aparecido em cena as linhas de produção (paginação, impressão e acabamento, integradas) totalmente digitais de baixos custos de produção. Mas assim, com tiragens tão reduzidas o preço dos livros torna-se obviamente caro para o salário médio português.

(Quase toda aquela gente que antes participava na feitura dos livros saiu de cena e já se debate mesmo a possibilidade de serem os editores a "fazerem" as capas nos actualmente muito badalados "AI image generators", mediante "inputs" dados à máquina através de um conjunto de palavras. Ou seja, está agora a chegar também o fim dos designers gráficos?!)

E obviamente não são só os livros, idem para as galerias (que estão desertas), para a música erudita, para o teatro ...para os sites de informação com conteúdos de qualidade mas que naturalmente tem custos que tem que ser pagos... etc.

Afinal a Cultura está toda interligada, Cinema, Literatura, Música, Pintura... e obviamente quando se chega ao Cinema de Autor que é normalmente menos "óbvio", e não se possuem as referências culturais que permitam "descodifica-lo" o sentimento mais comum será de rejeição ou frustração.

Como escrevia um membro (com uma licenciatura em engenharia) de certo grupo de Facebook dedicado ao cinema, "filmes franceses nem pensar, são todos uma seca", ou "tenho a colecção toda dos Pesadelos em Elm Street, uma mão cheia de obras primas" ...e outras "pérolas".

Um dia atrevi-me a apenas a dizer que havia uma grande diferença entre ser um grande actor e ser uma grande estrela (a propósito do Kevin Bacon) e tive que sair do grupo pois cometi um sacrilégio terrível. nails-) o-( :oops: .

Mas atenção, eu também gosto de um bom filme de puro entretenimento e divirto-me bastante com isso, desde que não seja o " Fim-de-Semana com o Morto". :mrgreen:

P.S.: Obviamente que deve haver quem leia isto e se recorde que há algum tempo atrás "critiquei" o Spielberg por ter feito um remake do "West Side Story" mas já relativamente a este "The Fabelmans" a atitude foi diferente; gostei e coloquei-o no meu top10 de 2022.
Luis.Manuel
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

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Como sei que há por aqui alguns fãs de banda desenhada e na sequência da referência a ascensão da AI no campo da criatividade visual, mencionada no meu "desabafo" anterior, aqui fica uma interessante entrevista ao artista britânico Dave Mckean, bem conhecido dos apreciadores de Graphic Novels (comics como se voltaram a designar). Onde já vai o "velho" Photoshop :roll:

Samwise
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

Post by Samwise »

Não sei quão bem te recordas dos Westerns do Ford mencionados no outro tópico (Clementine e Valance), mas creio que os vais apreciar (renovadamente) ainda mais, pois a questão da arte e da cultura enquanto determinantes civilizacionais é um elemento importante na narrativa. Uma espécie de fronteira delimitadora entre a humanidade e a selvajaria. A coisa não é assim tão simples quanto aqui estou a dizer, mas passa por isto.

(Sim, o Ford era um home culto e sensível, atento às realidades do mundo em que vivia)
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

Post by Samwise »

Luis.Manuel wrote: January 3rd, 2023, 8:27 am Como sei que há por aqui alguns fãs de banda desenhada e na sequência da referência a ascensão da AI no campo da criatividade visual, mencionada no meu "desabafo" anterior, aqui fica uma interessante entrevista ao artista britânico Dave Mckean, bem conhecido dos apreciadores de Graphic Novels (comics como se voltaram a designar). Onde já vai o "velho" Photoshop :roll:

Relacionado (ou, eis um pequeno vislumbre daquilo que a IA nos vai proporcionar e retirar em doses não assim muito equivalentes):

https://www.theguardian.com/commentisfr ... ty-artists
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

Post by Luis.Manuel »

Samwise wrote: January 3rd, 2023, 9:06 am Não sei quão bem te recordas dos Westerns do Ford mencionados no outro tópico (Clementine e Valance), mas creio que os vais apreciar (renovadamente) ainda mais, pois a questão da arte e da cultura enquanto determinantes civilizacionais é um elemento importante na narrativa. Uma espécie de fronteira delimitadora entre a humanidade e a selvajaria. A coisa não é assim tão simples quanto aqui estou a dizer, mas passa por isto.

(Sim, o Ford era um home culto e sensível, atento às realidades do mundo em que vivia)

Já tenho os filmes "localizados", para ver quando tiver disponibilidade para lhes dar a merecida atenção. A última vez que os vi ainda foi em VHS (uma edição espanhola de fraca qualidade pelos padrões actuais), há cerca de uns trinta anos. Memórias, essas são bastante difusas.

Nessa altura a sensação em matéria de westerns era mesmo o "Dances with Wolves" e logo depois surge o "Unforgiven" por isso ver estes filmes de Ford nesse tempo foi mesmo "só" curiosidade (ao que me recordo, "espicaçada" por um texto do saudoso João Bénard da Costa). Agora penso que será diferente, dado que a motivação para os ver é, para além da tua obviamente, de gente que eu nem suspeitava o quanto devem a Jonh Ford e à sua arte. https://youtu.be/SdqGV9PBmkg



Samwise wrote: January 3rd, 2023, 7:38 pm
Relacionado (ou, eis um pequeno vislumbre daquilo que a IA nos vai proporcionar e retirar em doses não assim muito equivalentes):

https://www.theguardian.com/commentisfr ... ty-artists

Embora eu pessoalmente já não exerça a profissão de designer de comunicação há mais de 10 anos, ainda acompanho as "novidades", especialmente porque os colegas e amigos mais novos que ainda estão activos se encarregam de me por ao corrente.

Ao que tenho percebido as opiniões dividem-se entre os cépticos que rejeitam que o que a AI "gera" seja Arte "On-demand" e os entusiastas que veem ali uma extraordinária "ferramenta" para aumentar o seu potencial criativo.

O verdadeiro "problema" é que a possível utilização da AI é muito mais vasta do que aquilo agora se vislumbra (e debate). https://youtu.be/Nn_w3MnCyDY
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

Post by Samwise »

Luis.Manuel wrote: January 4th, 2023, 10:07 am Já tenho os filmes "localizados", para ver quando tiver disponibilidade para lhes dar a merecida atenção. A última vez que os vi ainda foi em VHS (uma edição espanhola de fraca qualidade pelos padrões actuais), há cerca de uns trinta anos. Memórias, essas são bastante difusas.

Nessa altura a sensação em matéria de westerns era mesmo o "Dances with Wolves" e logo depois surge o "Unforgiven" por isso ver estes filmes de Ford nesse tempo foi mesmo "só" curiosidade (ao que me recordo, "espicaçada" por um texto do saudoso João Bénard da Costa). Agora penso que será diferente, dado que a motivação para os ver é, para além da tua obviamente, de gente que eu nem suspeitava o quanto devem a Jonh Ford e à sua arte. https://youtu.be/SdqGV9PBmkg
O Bénard da Costa adorava o Ford cá de uma maneira...! Também me lembro de alguns belíssimos textos que ele escreveu sobre obras do realizador, e que eram distribuídas na Cinemateca a quem ia assistir às sessões. Isto há uns 15 anos. Agora não sei como está. Ainda lá fui ver uns quantos westerns do Ford e de outros mestres, Hawks, Mann, Peckinpah, Boetticher, Walsh.... saint-)

A esta distância, é interessante comparar o Dances with Wolves e o Unforgiven (que são, para todos os efeitos, duas obras marcantes na história do cinema) com essas velhas glórias da era de Ouro em Hollywood, e também com abordagens mais recentes que deram bom resultado. Não para "estabelecer" quais são os melhores (e os piores...), mas para observar o que mudou com o tempo no modo de fazer cinema, e o que interessa em particular a cada realizador. Eu gosto cada vez mais do Ford, embora não nutra o mesmo carinho por todos os seus Westerns. Ainda assim, o Clementine foi "amor à primeira vista" - achei-o logo de uma beleza lancinante, e um filme em que estilo e conteúdo têm uma núpcia perfeita.

Não tinha era sucedido ver os dois de seguida, Clementine e Valance, e, assim tão ao perto um do outro, eles que estavam separados no tempo por 16 anos, permitem-se a comparações muito interessantes. como?-)

Sobre a gente que deve a sua arte ao mestre Ford, não sei se já viste, mas deverás apreciar este documentário do Bogdanovich:
https://en.wikipedia.org/wiki/Directed_by_John_Ford
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

Post by Helder Fialho »

Luis.Manuel wrote: January 2nd, 2023, 6:07 pm Há 29 anos atrás o prestigiado jornal New York Times publicou um artigo a menosprezar o cinema europeu (e a defender obviamente o cinema americano).
O cineasta Martin Scorsese respondeu-lhes com a seguinte carta:

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Não conheço o artigo do New York Times nem conhecia a carta do Martin Scorsese. Excelente! Está ali tudo. Hei-de procurar o artigo do NYT que motivou a resposta do Scorsese.

Isto está relacionado obviamente com a falta de horizontes cinéfilos que os americanos, de uma maneira geral, têm. Hollywood está nos Estados Unidos e, como o poder, o sucesso e a omnipresença de Hollywood é tão grande, eles crescem a pensar que Cinema e Hollywood são sinónimos e que não há mais cinemas e mais formas de fazer Cinema para além de Hollywood e o resultado é esse: ingenuidade, cegueira e arrogância cultural. Os Estados Unidos exportaram tanta coisa para o resto do mundo que eles acham mesmo que todos os países fazem Cinema como eles. O que é especialmente grave é que essa visão veio de um dos jornais mas prestigiados de Nova York: cosmopolita, liberal, tolerante, aberto, como a própria cidade, e não de um pasquim ou de um jornal do Sul conservador, intolerante, etc, de onde à partida se poderia esperar, aí sim, artigos de tal calibre. A isto acresce outra coisa: os americanos têm pouco mundo. Lêem pouco, conhecem pouco outras realidades, outras visões de fazer as coisas. Só sabem de dinheiro. Um filme de sucesso é um filme que rende mais dinheiro do que aquilo que custa fazer e mais nada. Não há mais nada para além disto. Se o filme teve salas cheias é necessariamente bom. Se tem as salas mais vazias, é mau. O box office é a medida de todas as coisas e quem achar que um filme é um objecto artístico e não pouco mais do que um detergente que se produz em massa, todo igual para toda a gente, só pode ser lunático. Como é que eles diziam nos anos 50? The only way is the American way. Isto fez-me lembrar o Trump. Há dois anos, quando o Parasite ganhou o Óscar de Melhor Filme, ele... bom, ele disse isto:

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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

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Helder Fialho wrote: January 6th, 2023, 10:01 pm
Não conheço o artigo do New York Times nem conhecia a carta do Martin Scorsese. Excelente! Está ali tudo. Hei-de procurar o artigo do NYT

Viva Helder Fialho, penso que o artigo em questão seja este:

>>>>https://www.nytimes.com/1993/11/07/week ... movie.html

Não tenho 100% a certeza porque me lembro que edições do NYT há 30 anos, em especial as de Domigo, eram "colossais" no número de páginas e no peso*. (Durante anos fui leitor no Centro Cultural Americano, em Lisboa, e vi lá algumas :mrgreen:)

Mas, "off topic" à parte, no artigo do NYT do link acima, a parte final é especialmente "agreste" para com o cinema (de autor) europeu. E a data coincide... (Fellini morreu em 31 de outubro de 1993)


*https://www.washingtonpost.com/blogs/er ... ewspapers/
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

Post by Helder Fialho »

Samwise wrote: January 2nd, 2023, 7:20 pm A propósito de uma troca de ideias decorrida aqui no tópico há uns dias atrás, lembrei-me enquanto estava a ler este texto do João Lopes no DN...

https://www.dn.pt/opiniao/-3488-especta ... 79445.html

A resposta simples (e reconhecidamente simplista) que tenho para oferecer é: o maioria do público a nível global NÃO tem cultura cinéfila, NÃO segue realizadores e NÃO faz a mais pequena ideia do que significa a "teoria do autor", e não penso que estejamos particularmente pior nesse capítulo do que estávamos há 20, 30, 40 ou 50 anos. Ou seja, estar lá Spielberg ou não estar vai dar quase ao mesmo no que respeita à bilheteira, mas se estiver uma "grande pipocada" em perspectiva à mostra no poster, como uma quantas que o Spielberg realizou, então já não vai.

Também li a crónica de João Lopes. Um texto acertadíssimo e muito corajoso por dizer muitas coisas que têm de ser ditas, nomeadamente sobre a constante desculpabilização e desresponsabilização dos estúdios em certos filmes por não "resultarem" no box office e a constante atribuição de culpas a factores que influem muito pouco ou nada no número de pessoas que vai ver os filmes. O Fabelmans do Spielberg está a ser mal promovido pela Universal (a meu ver, não é a única causa, ainda assim). Por um lado até compreendo que a Universal esteja a promovê-lo mal. Tal como o apelido Nolan, o apelido Spielberg é - tem sido - suficiente para atrair pessoas às salas sempre que estreia um filme novo do Spielberg. A Universal confiou nisso. Descansou. Fez mal. Não foi capaz, não soube ou não quis "ler" o público, sentir o "ar do tempo". Que está a mudar. Já mudou. O apelido Spielberg empre foi suficiente para atrair pessoas e foi suficiente até há quatro anos com o Ready Player One. O remake do West Side Story, dos 100 milhões de dólares quer custou, fez 76 milhões. O Covid e o pára-arranca (ou fecha-abre, neste caso) das salas de cinema nos EUA contribuiu também, é certo. Mas agora, com a situação do Covid muito melhor, o Fabelmans está a ser um desastre... 15 milhões, segundo as últimas contagens, em 40 milhões de orçamento... passa-se aqui algo de estranho. Isto não é normal. Estamos a falar, suprema ironia, do ainda rei das bilheteiras. Samwise, não concordo quando diz que estar Spielberg ou não estar vai dar ao mesmo. Agora, em 2022-2023, pode estar a vir dar ao mesmo mas nunca foi assim. Isto é algo novo. Spielberg tem várias "pipocadas" na sua obra e todas rebentaram as bilheteiras mas, como diz João Lopes e muiíssimo bem, essas pipocadas, esses blockbusters têm uma narrativa por detrás. Têm substância. Aquilo faz sentido. Não são filmes só para mostrar os últimos efeitos especiais. Os filmes-eucalipto actuais, como o Avatar e os da Marvel, são desprovidos de conteúdo. Já lá irei. Spielberg sempre alternou entre filmes infanto-juvenis (que agradam também a qualquer adulto) e dramas para adultos e estes dois tipos de filmes, com pouquíssimas excepções, foram campeões de bilheteira. Agora isto é diferente. O apelido Spielberg em 2022-2023 não está a ser suficiente para chamar pessoas às salas. É alarmante. É um sinal de perigo. Quando até o nome Spielberg não consegue chamar pessoas às salas, o que poderá suceder com outros nomes? Começa a juntar-se outro factor a tantos outros que já existem e que pode pôr em causa o futuro do Cinema norte-americano...

A Disney não comprou a 20th Century Fox por importar-se com o Cinema. A Disney comprou a Fox só para ser dona dos mega franchises ultra rentáveis da Fox: Planet of the Apes, Star Wars (que já tinha, em virtude de ter comprado a Lucasfilm que os co-produziu), Alien, Predador, Die Hard, Independence Day, Sozinho em Casa, X-Men, Night at the Museum e o primeiro Avatar que agora vai ser também um mega franchise. É nisto que os estúdios apostam todas as fichas. Nos Avatares, nos filmes de super-heróis. E o cinema sério fica relegado para segundo plano. É uma monocultura, como os eucaliptos, que sugam a água toda do solo. Neste caso, estes filmes "sugam" os écrans todos dos cinemas e o espaço disponível em termos de écrans para filmes de baixo orçamento é muito pouco e não conseguem ser vistos por muita gente e o que é ainda mais grave é que até filmes que custam 40, 50 milhões de dólares estão a começar a ter problemas em fazerem mais dinheiro do que custam. Filmes nomeados para Óscares! A maioria das pessoas come o que lhes é servido. Se lhes dão mais do mesmo, eles "comem" o mesmo mas se lhe derem uma dieta variada, já há mais hipóteses de verem outros filmes. O Scorsese foi muito criticado, o que era expectável, mas ele tinha toda a razão quando fez o artigo para a Hollywood Reporter a dizer que os filmes da Marvel não são Cinema. E não são. Têm todos muita bilheteira mas a história do Cinema não se faz com filmes destes e com Avatares. Mas Hollywood nos anos 70 não era assim. Quem dominava eram os Coppolas, os De Palmas, os Bogdnanovichs. Depois voltou a imperar a bilheteira. Eu já falei disto aqui. Não me vou estar a repetir.

Li a entrevista do James Cameron ao Expresso a propósito da sequela do Avatar e tudo aquilo é absurdo. Ele fala como se não fosse um realizador mas sim um director de uma empresa de efeitos especiais. E mais Avatares virão. Virá o 3, o 4, o 5... ele não vai fazer mais nada nos próximos anos senão isto. Ou não fosse também a Disney que estivesse por detrás, claro. Há imenso dinheiro a ganhar com este espectáculo de efeitos especiais sem conteúdo que os sustente.

Termino apenas dizendo que Hollywood tem de mudar. Isto tem de mudar. A situação actual é muito parecida com o final dos anos 60. A televisão roubava pessoas ao Cinema, as pessoas preferiam ver séries na TV do que ir ao Cinema e os estúdios só davam às pessoas mais do mesmo. As diferenças era que não havia plataformas de streaming, os géneros dominantes não eram os filmes de super-heróis e os grandes franchises mas o Western e os musicais, embora isso já não se traduzisse em bilheteira porque as pessoas estavam cansadas do mais do mesmo e queriam coisas diferentes, daí que o Hello Dolly, por ex, tenha sido um flop e os estúdios só acordaram depois de terem tido vários flops seguidos e decidiram finalmente arriscar na geração do Coppola, a da New Hollywood, que contactou na Universidade com os filmes de Bergman, Fellini, Kurosawa e que inovaram e trouxeram uma lufada de ar fresco a Hollywood. E liberdade. Liberdade de decidirem o que fazer, mesmo que os estúdios perdessem dinheiro com alguns dos seus filmes. Os produtores acreditavam neles, como Irving Thalberg muito antes deles. Thalberg, de resto, foi evocado por David Lean neste vídeo que partilho e que é muitíssimo actual. Em 1990, um ano antes de morrer, David Lean recebeu o prémio de carreira do AFI (American Film Institute) e fez um discurso brilhante no qual exortou os estúdios a apostarem nos novos realizadores, nos autores cheios de talento e a não fazerem só sequelas atrás de sequelas, pois, e parafraseia Thalberg, os estúdios, com tanto dinheiro que têm, bem que podem dar-se ao luxo de perder algum dinheiro e arriscarem financiar cinema de qualidade e coisas novas em vez só de jogar pelo seguro e apostarem nos filmes que dão lucro garantido. Se David Lean tivesse chegado a ver o actual excesso de filmes de super-heróis... À luz da actualidade, o discurso de David Lean é premonitório, pois ele manifestou um grande receio de que as séries de televisão fossem suplantar o Cinema e as "partes 1, 2, 3 e 4" dominassem, se os estúdios continuassem na direcção em que estavam. O público ri-se mas a verdade é que aconteceu.

Helder Fialho
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

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Numa altura em que as salas de cinema ainda não têm o volume de pessoas que tinham até 2019, antes da pandemia, esta pode ser uma boa forma de aumentar o número de pessoas nas sessões de cinema e a bilheteira. :-P Esta é a capa da partitura de uma música de 1919 que tem por título "Take Your Girlie to the Movies (If You Can't Make Love at Home)" que, em português, é, literalmente, "Leva a tua Miúda aos Filmes (Se Não Consegues / Podes Fazer Amor em Casa). Matam-se dois coelhos de uma cajadada. Quem tiver falta de tempo e muitos afazeres ou sempre muita gente a circular em casa e pouco tempo... para a "miúda"... actualmente nas salas já se faz tudo menos efectivamente ver o filme e a sala é escura, então... porque não? :-P

Claro que a música não tem nada a ver com isso. :-P Em 1919 o Cinema estava no seu início mas, na florescente Hollywood, já se estava a começar a criar o star system e o público já não se satisfazia só em ver os filmes. Queria imitar os actores do cinema mudo. Quer o público masculino, quer o feminino. Imitar em tudo: na maneira de vestir, no comportamento, nas expressões faciais e até a maneira de beijar. Os homens, por exemplo, para impressionarem as suas namoradas, queriam imitar a forma de beijar dos galãs como Rudolph Valentino. Elas, imitavam os penteados ou usavam vestidos iguais aos da actriz x na personagem y do filme z. A música reflecte isso.


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Esta é a letra da música:

Beatrice Fairfax gives advice,
To anyone in love
That's why Johnny Gray,
Wrote to her one day
'When I call to love my girl,
Her folks are always there
That's why I'm blue,
What shall I do?"
And Beatrice said, "never despair"

Just take your girlie to the movies,
If you can't make love at home
There's not little brother there who always squeals,
You can say an awful lot in the seven reels.
Take your lessons at the movies,
And have love scenes of your own
Tho she's just a simple little ribbon clerk,
Close your eyes and think you're kissing Billie Burke
Take your girlie to the movies,
If you can't make love at home.

Sweethearts always used to spoon,
In a big morris chair
Young folks of today,
Have a different way
Far away from cranky dad,
And mother's eagle eye
It's lots of fun,
Here's how it's done,
So come on and give it a try.

Take your girlie to the movies,
If you can't make love at home
Find a cozy corner where it's nice and dark,
Don't catch influenza, kissing in the park.
Take your tips from Douglas Fairbanks

And have love scenes of your own!
Going to your seat you've got a dandy chance
You can shine your shoes on someone else's pants
Take your girlie to the movies,
If you can't make love at home.

Helder Fialho
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

Post by Helder Fialho »

Na semana passada estreou na Antena 2 um programa sobre bandas-sonoras de filmes. Chama-se Banda Sonora e tem autoria e apresentação de Mafalda Serrano. Estou neste momento a ouvir o programa desta semana que é sobre o filme Leaving Las Vegas. Está a terminar. Recomendo! É aos Sábados às 22h.

Mais informação sobre o programa aqui: https://www.rtp.pt/antena2/destaques/ba ... -5h00_5096
Helder Fialho
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

Post by Helder Fialho »

Mais um excelente texto de João Lopes, com quem partilho os mesmos receios e preocupações relativamente ao presente e ao futuro do Cinema.

https://www.dn.pt/opiniao/a-vida-depois ... 00505.html
Luis.Manuel
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Re: Desabafos... (Off-TopiC)

Post by Luis.Manuel »

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