Mamã: voando sobre a loucura das relações humanas
Xavier Dolan regressa, pela segunda vez em 2014, às salas nacionais. E, desta vez, é com Mamã, um filme muito peculiar sobre a relação não menos invulgar entre uma mãe e o seu filho problemático. Este é um dos acontecimentos mais marcantes da reta final deste ano cinematográfico.
Uma mãe viúva, desenrascada e sem papas na língua, e o seu filho de 15 anos, imparável, carismático e violento, num Canadá com o seu quê de distópico (Dolan insere, numa narrativa realista, uma dimensão social fictícia, que acabará por criar uma outra perspetiva em certas situações da história), protagonizam uma história de sobrevivência na vida mundana, dominada por números, rótulos e burocracias, e que cada vez menos pode ser associada com a palavra “Humanidade”. No caminho ainda conhecem uma vizinha caricata e vivem uma série de questões que os tentarão ajudar a enfrentar o caos… ou talvez não.
Antes de partirmos para a análise de Mamã, há um dado curioso que convém relembrar: o filme foi distinguido com o (para alguns, sacrílego) Prémio Especial do Júri do Festival de Cannes, a meias com Jean-Luc Godard e o seu Adeus à Linguagem. E é clara a intenção irónica e paradoxal que pode ser retirada desta ocorrência, se compararmos as duas entidades em causa. Godard, cineasta de mérito do “antigamente”, aplaudido por gerações e por vários sectores da crítica especializada, vive agora da fama de conquistas longínquas, mantendo uma certa postura (tanto odiável como adorável) que defende que montar fragmentos aleatórios de vídeo num programa com menos qualidade que o Windows Movie Maker é cinema (e o trailer desse novo filme mostra como o mesmo deve fazer jus a esta ideia estereotipada que ganhámos do cineasta nos últimos anos).
Já Xavier Dolan, jovem realizador high-tech, frenético e ultra-pop, melhora de filme para filme, tornando-se um autor cada vez mais consistente e coerente. E gostando-se ou não do seu trabalho (por estes lados, só começámos verdadeiramente a apreciar as suas investidas com Tom na Quinta, filme que antecedeu Mamã – uma muito interessante abordagem psicológica que vai mais além do puro hipsterismo que começou por caracterizá-lo), há que admirar a forma como Dolan se tem imposto, em tão tenra idade, como um realizador que gera burburinho cinéfilo. Isso causa opiniões diversas, e um sincero sentimento de inveja por parte do autor destas linhas.
E sem ter uma certa formação cinéfila que, para algumas mentes mais restritas mas muito pós-modernas, só pode ser a única adequada para quem se quiser tornar num “verdadeiro” cineasta (formação essa que implica gostar e idolatrar um número limitado de realizadores, cuja presença fica sempre bem em qualquer lista que elege os “melhores de todos os tempos” – e um deles, claro, é Godard – e incluir sempre referências óbvias ao trabalho desses ícones do cinema em qualquer filme que seja elaborado – o que confere status e credibilidade intelectual), Dolan conseguiu reunir o agrado de algumas elites, como também, de uma parte das massas, através de uma série de influências dispersas e diversificadas – e não, o trabalho do senhor Jean-Luc não se encontra no meio delas.
Diz-se que só se consegue escrever um bom livro depois dos 40, mas agora não sabemos se isso poderá mesmo ser verdade na questão do cinema, ou pelo menos, com este caso em particular. Porque apesar de algumas jovialidades notórias, em termos visuais e psicológicos, Mamã sobrevive no nosso imaginário como uma história perfeitamente adulta, em que os artifícios estéticos mais não são que um acompanhamento para uma narrativa que tem os pés bem assentes na terra.
Parece impossível, aliar infantilidade com seriedade, atribuindo a mesma importância a ambas as partes (e fazendo com que estas se influenciem mutuamente)? Nem por isso, e Mamã vence não só por causa desses fatores (como também pelo uso do formato de ecrã 1:1, idêntico ao das imagens do Instagram – não, não é nenhum defeito da projeção, caros leitores! -, cruzado com o cinematográfico 16:9, que tem um significado simbólico), mas por conseguir funcionar muito bem, tanto na sua estrutura como no seu efeito emocional. E mesmo que essas emoções pareçam demasiado plásticas, artificiais, “fofinhas”, elas têm um fundo social, e familiar, muito próprio e convincente.
Além disso, Dolan concilia uma montagem bem ritmada (e que se adequa perfeitamente a cada momento do filme e às reações que devemos retirar das suas personagens e das atitudes que tomam) com interpretações brilhantes (tanto Anne Dorval, a mãe, como Antoine-Olivier Pilon, o filho, são perfeitos nas suas composições e na interação necessária para a eficácia das mesmas), incluindo pequenas situações típicas do quotidiano com outras, mais desconcertantes, num tipo de história que já vimos muitas outras vezes antes – mas a abordagem dolaniana leva-nos a querer ver, de novo, aquilo que já conhecíamos (ou que pensávamos conhecer) tão bem.
Mamã é um filme característico do cinema de Xavier Dolan no lado socialmente moderno das suas personagens, e na excentricidade com algo de pimba e de pop que as une, movidas pela velocidade estonteante dos novos modelos de relações humanas provocados pela tecnologia. Mas neste filme, procura-se também explorar a atribulação dos gestos mais simples, e de demonstrar como as coisas que tomamos como lineares e objetivas podem possuir uma outra face, aterradora, inesperada e até desumana, que pode destruir todo um percurso de vida.
Neste processo de pura loucura humana (e o final, cujas intenções libertárias nos fez lembrar, em parte, o desfecho de Voando Sobre um Ninho de Cucos), parece que só resta continuar pacientemente à espera da felicidade, e da concretização dos sonhos… mesmo que a vida nos faça dar uma volta tão grande que nos impossibilite, para sempre, de concretizar qualquer desejo. Um filme notável e com qualquer coisa de memorável, que suscita um outro tipo de reflexão pertinente sobre todos nós, sem perder qualquer tom de universalidade.
9/10