Film Noir - o Tópico

[Samwise]

Fiz uma mini-sessão "série B noir" e congratulo-me por pela excelente selecção de títulos que me ocorreu.

Vi duas obras de Richard Fleischer, que em duração de fita totalizam duas horas e um quarto (fiz um "dois-em-um" com o meu tempo, portanto), e que recomendo sem reservas ao apreciadores do género:
- 1949 - Follow Me Quietly - Segue-me em Silêncio ( wiki| imdb )
- 1952 - The Narrow Margin - Forças Secretas ( wiki | imdb )

A terem pouco tempo e conforontados com uma escolha, eu iria para o The Narrow Margin, que é um dos melhores exemplos de um noir série B feito com meios reduzidos de produção (a coisa foi filmada em 13 dias), e que em pouco mais de uma hora dá uma lição de bem filmar e de bem resumir uma história através de imagens num espaço confinado (um comboio em andamento). Também está no topo da tabela enquanto demonstrativo "pulp" daquilo que o Cinema Noir do período clássico é entendido a esta distância no tempo, e antecede, em larga medida uma série de outras obras que utilizam um comboio em andamento para lá contextualizarem sequências de suspense e de acção (muito notavalmente, alguns "episódios" do franchise Bond - e o From Russia with Love em concreto). A obra teve um remake simpático e competente em 1990, com Peter Hyams ao leme e Gene Hackman como cabeça de cartaz, mas não vale metade do original.

O Follow Me Quietly recomendo por outras razões - mais de ordem psicológica, no campo das nossas obsessões de identidade colectiva. É um procedural cop-movie em que um detective pressegue um criminoso "sem rosto" - um assassino-em-série de quem conhece as características e o modus-operandi, mas de quem desconhece a identidade, passando a investigação pela elaboração de um boneco-modelo, à escala real, com as características físicas que se imaginam do criminoso, mas sem o rosto a completar. Diria que o Se7en do Fincher deve uns pózinhos a esta narrativa, que, estando longe de ser um grande filme (ou um grande noir) tem contudo uma série de características que o tornam irrecusável. Muito interessante a sequência em que o rosto do criminoso é finalmente revelado.

[Luis.Manuel]

Vi alguns noirs da lista, mas nunca percebi bem bem a definição exacta de "Noir" (até porque parece haver alguma polémica sobre o que é ou não é). Há algum tempo atrás vi um filme espanhol que segundo alguns gurus do Twitter será um noir (?): El Crack (1981) de José Luis Garci, Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1982 e gostaria de conhecer a opinião do Samwise (e de quem o tenha visto e se quiser pronunciar) sobre o mesmo.
https://m.imdb.com/title/tt0082210/.
Eu por acaso gostei.

[Samwise]

Vi alguns noirs da lista, mas nunca percebi bem bem a definição exacta de "Noir" (até porque parece haver alguma polémica sobre o que é ou não é). Há algum tempo atrás vi um filme espanhol que segundo alguns gurus do Twitter será um noir (?): El Crack (1981) de José Luis Garci, Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1982 e gostaria de conhecer a opinião do Samwise (e de quem o tenha visto e se quiser pronunciar) sobre o mesmo.
https://m.imdb.com/title/tt0082210/.
Eu por acaso gostei.

Agradeço a sugestão Luís - não conheço o filme, nem me lembro de alguma vez ter ouvido falar dele, mas regra geral acabo sempre por apreciar imenso as tuas sugestões. Espero que esta seja mais uma para juntar a essa lista.

Quanto à "definição exacta de Noir", pois, parece-me que não há uma. Para isso teria de haver uma autoridade máxima no assunto ( ), que também julgo que não tenha existido no tempo (mesmo o crítico francês que terá cunhado o termo foi "apenas" mais uma voz a pronunciar-se sobre um tema com muitos contornos e ramificações). Os elementos basilares do género são mais ou menos consensuais no meio, bem como um punhado de obras definidoras e "demonstrativas" que formam um núcleo compacto, mas a partir desse centro, e até uma periferia "fronteiriça" com aquilo que "já não é noir", a coisa torna-se gradualmente pantanosa. É terreno instável onde não quero colocar o pé (ainda é enlaçado por alguma femme fatale). Sobre esse problemática, prefiro adoptar o "critério largo" e apreciar de vez em quando um gato a quem alguém chamou de lebre e que me acabou por saber a filet mignon.

[Samwise]

Interessante. Algo novo para mim.

A expressão que me ocorre assim à primeira ideia é uma aliteração em "N". Estamos na presença de um protótipo híbrido - assim como que um "neonoir-neorealista" - com ambos os conceitos aplicados ao de leve em relação às matrizes originais.

Uma experiência que funciona bem no contexto histórico-temporal em que o filme se situa - e em que foi realizado: Espanha nos primeiros anos pós-queda da ditadura (ainda esperei ver alguns remanescentes dessa era, como sucede no La Isla Minima, mas aparentemente o realizador intencionou afastar-se de qualquer conotação, contexto ou mensagem políticos).

As ligações que há em relação ao período clássico do noir americano aparecem aqui sem qualquer estilização visual ou polimento artificial que caracterizam quase transversalmente essas obras (a "luz" é normalíssima, quer de dia quer de noite - quase deslavada - é a antítese realista dos efeitos de luz e sombras expressionistas). Em vez disso há uma ancoragem dos protagonistas num quotidiano realista e bastante convincente, onde depois é montada uma intriga cliché de uma pessoa desaparecida com um detective no encalço. Detective esse que também está na antítese dos protagonistas viris do romance hard-boiled (Sam Spade e Philip Marlowe em particular) e passaria bem por português dada a fisionomia e a "máscara facial".

Mais do que as histórias de Hammett (a quem a fita é dedicada), a matriz para mim mais evidente é uma obra de Fritz Lang, o The Big Heat, um dos raros exemplos que dedica algum tempo à vida familiar do detective - embora em muito menor grau que no El Crack, e de uma forma bem mais polida e romantizada. Há um outro ponto fulcral de ligação entre os filmes, mas vou reservar essa descoberta para os felizardos que tencionarem passar pela experiência de ver ambos sem spoilers "traiçoeiros".

Em todo caso, diria que o filme só entra em territórios realmente noir quase lá para o fim, a partir do momento em que o protagonista passa por uma experiência que o transforma... (e mais não digo).

Fora isso, é uma obra com um pendor melancólico intensificado pela formatação musical e pelos grandes planos da(s) cidade(s) que o realizador faz questão de mostrar, e que acentua de alguma forma a sensação de mescla entre "géneros" que à partida não encaixariam bem uns nos outros, mas que acabam no final a soar bem (primeiro estranha-se, depois entranha-se...).

[Luis.Manuel]

Interessante. Algo novo para mim.

A expressão que me ocorre assim à primeira ideia é uma aliteração em "N". Estamos na presença de um protótipo híbrido - assim como que um "neonoir-neorealista" - com ambos os conceitos aplicados ao de leve em relação às matrizes originais.

Uma experiência que funciona bem no contexto histórico-temporal em que o filme se situa - e em que foi realizado: Espanha nos primeiros anos pós-queda da ditadura (ainda esperei ver alguns remanescentes dessa era, como sucede no La Isla Minima, mas aparentemente o realizador intencionou afastar-se de qualquer conotação, contexto ou mensagem políticos).

As ligações que há em relação ao período clássico do noir americano aparecem aqui sem qualquer estilização visual ou polimento artificial que caracterizam quase transversalmente essas obras (a "luz" é normalíssima, quer de dia quer de noite - quase deslavada - é a antítese realista dos efeitos de luz e sombras expressionistas). Em vez disso há uma ancoragem dos protagonistas num quotidiano realista e bastante convincente, onde depois é montada uma intriga cliché de uma pessoa desaparecida com um detective no encalço. Detective esse que também está na antítese dos protagonistas viris do romance hard-boiled (Sam Spade e Philip Marlowe em particular) e passaria bem por português dada a fisionomia e a "máscara facial".

Mais do que as histórias de Hammett (a quem a fita é dedicada), a matriz para mim mais evidente é uma obra de Fritz Lang, o The Big Heat, um dos raros exemplos que dedica algum tempo à vida familiar do detective - embora em muito menor grau que no El Crack, e de uma forma bem mais polida e romantizada. Há um outro ponto fulcral de ligação entre os filmes, mas vou reservar essa descoberta para os felizardos que tencionarem passar pela experiência de ver ambos sem spoilers "traiçoeiros".

Em todo caso, diria que o filme só entra em territórios realmente noir quase lá para o fim, a partir do momento em que o protagonista passa por uma experiência que o transforma... (e mais não digo).

Fora isso, é uma obra com um pendor melancólico acentuado pela formatação musical e pelos grandes planos da(s) cidadade(s) que o realizador faz questão de mostrar, e que acentua de alguma forma a sensação de mescla entre "géneros" que à partida não encaixariam bem uns nos outros, mas que acabam no final a soar bem (primeiro estranha-se, depois entranha-se...).

Grato, Samwise pela pronta resposta ao meu pedido . Um texto esclarecedor e muito bem escrito (como aliás é habitual). Na realidade (como provalmente já terás conhecimento) este "interessante" filme deu origem a uma trilogia: El Crack (1981) El Crack Dos (1983) e El Crack Cero (2019) o último com uma estética já mais próxima do tradicional "Noir", fotografia, iluminação e também a inevitável "femme fatal" mas sem a participação de Alfredo Landa (morto em 2013) que foi substituído por Carlos Santos (El Ministerio del Tiempo) na pele do detective privado Germán Areta https://www.youtube.com/watch?v=QwQ1WliWahg

Uma correção importante: Não foi este filme que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1982, como erradamente escrevi antes mas sim o "Volver a empezar" também do mesmo realizador.


Uma curiosidade um pouco off topic..
Por cá fizeram-se alguns filmes "policiais" os mais recentes serão bem conhecidos de toda a gente, mas deste eu nunca tinha ouvido falar:
"Três Espelhos" de 1947 dirigido por Ladislao Vajda um realizador húngaro refugiado que por cá passou e ensinou umas coisitas aos realizadores portugueses da época
https://www.youtube.com/watch?v=Zw38d4uE-f0

O filme (fraquito) tem como protagonista o multifacetado João Villaret no papel de um investigador da PJ https://cinemaportuguesmemoriale.pt/Fil ... s-espelhos

Ladislao Vajda fixou-se depois em Espanha onde teve mais sucesso e onde acabaria por falecer em 1965

[Samwise]

Grato, Samwise pela pronta resposta ao meu pedido . Um texto esclarecedor e muito bem escrito (como aliás é habitual). Na realidade (como provalmente já terás conhecimento) este "interessante" filme deu origem a uma trilogia: El Crack (1981) El Crack Dos (1983) e El Crack Cero (2019) o último com uma estética já mais próxima do tradicional "Noir", fotografia, iluminação e também a inevitável "femme fatal" mas sem a participação de Alfredo Landa (morto em 2013) que foi substituído por Carlos Santos (El Ministerio del Tiempo) na pele do detective privado Germán Areta https://www.youtube.com/watch?v=QwQ1WliWahg

Sim, fui pesquisar o que mais poderia haver de "thrillers" policiais ou psicológicos na filmografia do realizador e dei com essa sequela e prequela. Estão nos planos para os próximos tempos. Mas não tenho particular interesse nos outros filmes do realizador, Oscares ou sem Oscares ( ).

Ainda em relação aos paralelos que podemos encontrar entre o El Crack e o The Big Heat, lembrei-me de mais um: em ambos os filmes os detectives estão numa classe social mais baixa e combatem a corrupção imposta por alguém no "topo da pirâmide", que devido ao seu poder e influência pode dar-se ao luxo de cometer qualquer crime e achar que se safa com isso. Não é só um jogo de gato-e-rato (e de descobrir "onde está a pessoa", ou "quem matou"), é também uma luta por justiça social - uma luta por fazer os poderosos pagarem de facto pelos crimes que cometem.

[Samwise]

Vi o Born to be Bad - A Deusa do Mal, de Nicholas Ray. Não é um noir - apenas tem uma aproximação ao género via uma personagem ultra-manipuladora, uma megera interpretada por Joan Fontaine, a fazer de "mulher-fatal". Não há vislumbre de qualquer crime na narrativa - a intriga gira em torno de uma mulher egocêntrica que consegue "infiltrar-se" na esfera privada de um grupo de amigos "ricalhaços" e roubar o noivo à amiga que a acolheu em primeiro lugar. Longe das obras maiores de Ray, o filme é um entretém competente, suportado por um elenco de estrelas e a habitual atenção aos diálogos afiados, mordazes e surpreendentes que caracterizam o trabalho do realizador, e que servem aqui de arma de combate entre personagens. Vale essencialmente por estas vertentes - e pela viagem ascendente(? ) da personagem ao longo da teia de decepção e engano que vai tecendo... até um dia... 7/10.