José Miguel, para além de um agradecimento sentido, nem sem bem o que hei-de dizer depois dessa tua mensagem
.
Caso único! Em não sei quantos anos de "debate na Internet", creio que nunca obtive uma resposta como a tua, ao mesmo tempo demonstrativa de que entendeu a mensagem que tentei transmitir, humilde na forma como a aceita, e por fim fundamentando as razões que levam as nossas perspectivas a serem tão diferentes. Reconhecendo o meu lado, fizeste-me entender o teu lado também. Li com atenção e percebi - percebi sobretudo a questão do "ódio de estimação" e a forma como este pode surgir.
(não há aqui um smile a fazer uma vénia
). Como um "verdadeiro matemático" (não quero nem debater este conceito
), mudaste a forma como olhavas para a "equação" sem mudares a tua "maneira de ser".
A propósito dos "críticos de cinema", e em jeito de resumo, identifico 3 razões fundamentais que levam muitas pessoas a odiarem tal profissão:
1 - O principal é ... "o gosto". As pessoas em geral (e penso que ainda não conheci um exemplo que difira) gostam de obter confirmações externas para os gostos que têm. Há um conforto emocional imediato quando ouvimos alguém que nos é próximo confirmar que também tem esse gosto. Pelo contrário, quando há uma clivagem de opiniões, a nossa reação mais instintiva é desvalorizar a opinião contrária, não lhe ligar importância, e muitas vezes nem sequer ouvir as justificações para essas diferenças de gosto - valem a pena para quê? Para nos chatearmos? No contexto da crítica, um "mau crítico" começa por ser aquele que "não vê as evidências" e "ataca" algo que para nós é "sagrado", "inquestionável". Quando saímos de um filme e nos sentimos "em estado de graça" quanto ao deslumbramento que nos proporcionou, qual é a reacção imediata ao vermos uma bola preta na avaliação de um crítico? Todos sabemos qual é! "Criticos de merda!" "E ainda por cima combinaram todos uns com os outros!" O post do elfaria sobre o Avatar é o exemplo cabal: como é possível que um crítico deite abaixo "uma das mais importantes obras cinematográficas do ano?" questionava-se o autor. Não lhe interessaram as razões, interessou apenas que o crítico não tivesse apreciado o Avatar (nem a "mais-valia" do 3D). A ideia do crítico que escreve exclusivamente para nos agradar, para nos "fazer festinhas" no ego, dizendo-nos aquilo que já sabemos e confirmando aquilo de que gostamos, parece de certa forma prevalecer sobre aquilo a que próprio termo - "crítico" - alude.
2 - Nível cultural e estilo do texto. De outra forma, a ignorância do leitor face à intelectualidade do texto. As pessoas sentem-se insultadas com textos que não conseguem ler, que não entendem. Ao "descobrirem" a sua própria ignorância - ao sentirem-se burros - , recusam-se a reconhecer que aquele texto não foi escrito para elas e decidem atacar quem o escreveu. Não quero associar a esta questão qualquer ideia de culpa, nem para um lado, nem para o outro (o leitor não tem culpa de não perceber, e o escritor não tem culpa de estar naquele patamar cultural/intelectual), quero apenas expôr uma evidência. Num exemplo extremo, é como pôr além com o 9º ano de escolaridade, habituado a ler a Maria todas as semanas, a tentar decifrar um texto do Vasco Graça Moura. De quem é a culpa? Há uma culpa? Há apenas uma desadequação entre autor é público alvo. Da mesma forma, quando os leitores descobrem que não entenderam este ou aquele significado oculto na meta-narrativa de um filme, sentem-se burros, sentem-se insultados por alguém que se arroga a ter conhecimentos de cinema suficientes para fornecer "uma explicação". Um pedante, por outras palavras. Esquecem-se que um crítico não pretende ter "mais razão do que eles", nem invadir a sua área de "autoridade" sobre o assunto, está apenas a exprimir a sua opinião própria. A nível pessoal, não sei quantas vezes descobri através de textos críticos a minha própria burrice, mas em vez de ficar irritado, fico antes bastante contente por poder contar com tais reflexões, tais interpretações, que me abrem a mim janelas para outros mundos, perspectivas novas, ideias complementares, dentro do meu pensamento. Sempre olhei para a crítica interpretativa com interesse, não com desdém ou ressabiamento. Neste contexto, poder contar com uma opinião diferente da nossa - mesmo quando é contrária, mesmo quando é intelectualmente superior, às vezes de forma esmagadora - é um previlégio, não um ataque pessoal.
3 - O estatuto de "ser crítico". O estatuto conferido por terceiros a essas pessoas que são "Críticos", em conjunto com o facto de estarem numa posição de alcance social massificado, confere imediatamente ao crítico um poder de opinião muito maior. É inegável. Quem não concorda com a opinião de um crítico, ou, no imediato, com o seu gosto (ao olhar apenas para as etrelas) não tem meios para transmitir a sua opinião da mesma forma que o crítico - porque não se encontra reconhecida/mandatada por ninguém, e porque não tem um suporte que seja lido por tanta gente que o respeita - como por exemplo um jornal. Há logo uma situação de impotência e injustiça associadas a esta ideia (mais a mais: "ele recebem dinheiro para estarem ali"). Resulta na negação do estatuto do crítico: "essa pessoa não é crítico nenhum, é alguém que manda uma patacoadas, geralmente em sentido contrário ao do espectador, só para mostrar que é esperto!" Pior de tudo, "apenas posso responder na caixinha de texto dos comentários, mas podem ter a certeza de que vou escrever todos os insultos de que me lembre!" Ninguém gosta de se sentir diminuido, em desvantagem para tecer opiniões. Os críticos acabam por vezes por ser os escapes para a frustração da voz que ninguém ouve.
Resultados: indignação, irracionalismo, intolerência, e a generalização de toda uma série de princípios que estão errados logo no fundamento.
Peço desculpa se vos aborreci - penso que às vezes começo-me a repetir em demasia - mas quis fazer um resumo dos principais motivos que me levam a mim a zangar com quem se zanga com "a crítica". O José Miguel teve uma participação espectacular a este nível, e estar-lhe-ei eternamente grato por me ter dado a oportunidade de responder desta forma.