Entrevista a Mário Zambujal

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rui sousa
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Entrevista a Mário Zambujal

Post by rui sousa »

Viva! Partilho convosco uma entrevista que fiz ao escritor. Foi para uma cadeira de Jornalismo mas fiquei com pena de deixar isto "arquivado". E depois de ter contactado, sem sucesso, vários jornais, decidi publicar na Máquina de Escrever. Aqui fica.
Mário Zambujal: “Não olho para o passado de uma forma melancólica”

A recente celebração dos oitenta anos de vida do escritor e jornalista foi o pretexto para uma conversa sobre as recordações da sua carreira.


Entre alguns cafés e uma quantidade considerável de cigarros, falou-se sobre 80 anos de vida que escondem muitas histórias. Cada resposta de Mário Zambujal é uma porta aberta a muitos mundos e a um sem-número de memórias dispersas, mas divertidas e marcantes no seu percurso. Um homem que convive sempre com o passado, mas que nunca deixa de olhar para o futuro.

A sua personalidade aproxima-se de algum dos seus bons malandros? Ou todos têm alguma coisa de si?
Depende do sentido que dermos à palavra “malandro”. Pode ser um preguiçoso, ou um tipo com aquela malícia na abordagem às mulheres, ou um marginal. Nestas três vertentes, eu vejo-me mais no papel do preguiçoso.

E nas outras duas não?
Não, sou um homem tranquilo.

Nem naqueles tempos boémios dos anos 70 e 80?
Durante muito tempo, os jornais matutinos fechavam às quatro, cinco da manhã. Eu estive muitos anos nisso, e muitas vezes quando saía às três já era fantástico. A minha vida era noctura, e daí ser muito associada à boémia. Quando na realidade, tudo o que se pode fazer associado à boémia pode ser de dia.

Mas era outro mundo…
Era um mundo mítico. Mas repare: não era Lisboa a capital portuguesa da imprensa. Era o Bairro Alto! E o Bairro é um mundo nocturno muito vivo. A classe jornalística era muito mais pequena. Toda a gente se conhecia e se encontrava nos mesmos sítios. Agora também se vive à noite. As coisas é que mudaram por causa de todas as transformações sociais.

O que mudou assim tanto?
As relações humanas, com o aparecimento das tecnologias avançadas, com todos os seus encantos e benefícios que trouxeram à nossa vida. Eu admiro-as, mas ao mesmo tempo faz-me impressão que se tente remediar o óbvio. A taxa de desemprego humano vai ser uma barbaridade, porque não se tomaram as devidas precauções. Temos de saber o que vamos fazer às pessoas. Houve um filme do Charles Chaplin, chamado Tempos Modernos, que mostra o homem como um mero auxiliar da máquina.

E Chaplin, portanto, já falava disso nos anos 30.
Sim. Eu só tenho um telemóvel para fazer chamadas e mensagens. Um gajo que tem um telemóvel fino, tem um mundo lá dentro. O trabalho que ele tem no telemóvel seria feito em instalações, com 5 ou 6 empregados. Agora já não precisa disso. A malta nova não consegue conceber o mundo sem telemóveis. Quando apareceram, há vinte anos, eu já tinha idade, tinha toda a formação humana, os costumes, os hábitos, de um homem que cresceu a gostar e a fazer determinadas coisas.

Mas habituou-se aos telemóveis…
Há vinte anos, quando surgiram, a primeira coisa que eu disse foi: “jamais eu andarei pela rua armado em cabine telefónica! Nem pensar!”. É claro que depois, a nova maneira de viver a vida obrigou-me a ceder. E hoje tenho dois. Com um deles nunca fiz uma chamada, a não ser para encontrar o outro. Nunca sei onde o deixo (risos). Aquilo que eu antes achava inconcebível, voltar a casa por me esquecer do telemóvel, acontece regularmente. Mas sempre tive dificuldade em habituar-me a isso. Não tenho vontade de mudar.

Prova disso é o facto de continuar a escrever à mão.
Escrevendo à mão, estou totalmente concentrado no que estou a fazer. A mão leva-me para onde quero ir. As letras vão-se desenhando sem eu desviar-me do que pretendo escrever. Um gajo escreve num computador e não há distinção. E um dia, muitas obras modernas, com mérito, que são publicadas, não deixarão nenhum património pessoal. É tudo a macintosh.

É como se escreve o jornalismo moderno?
Hoje entro numa redacção, e a grande diferença, comparando com os meus tempos nos jornais, é que havia uma nuvem de fumo enorme. Agora é tudo limpinho. Depois, havia a banda sonora, que era o batuque das máquinas de escrever. Fazia da sala um corpo intensamente vivo. Hoje é o silêncio e o ar puro, parece um velório. E as pessoas falavam umas com as outras e expunham as suas dúvidas. “Olha lá, ‘sossego’ é com cê ou dois ésses?”. As pessoas perguntavam umas às outras. Agora vão ao Google, discreta e silenciosamente, porque ninguém quer dar ar de fraco. Até porque a vida dos jovens está cruelmente competitiva

Não usa o Facebook ou outras redes sociais?
Não, porque a rede social, para mim, é uma sala cheia de pessoas, com quem posso falar directamente. Sou profundamente humanista na perspectiva de que não há máquina que substitua o ser humano. A complexidade do cérebro é absolutamente incomparável. As máquinas, dão só uma imitação da presença.

Critica o presente, mas sente saudosismo pelo passado?
Detesto aqueles gajos que dizem “no meu tempo é que era bom”. É mentira! Além de que este tempo também é meu. E naquele tempo havia coisas horrorosas, mais fome, miséria, analfabetismo, doenças, menos assistência médica. Por isso não vamos baralhar as coisas. Os cigarros é que eram iguais! (risos) Gosto de me lembrar desses tempos, mas não olho para o passado de forma melancólica.

Mas gosta de se reunir com os velhos amigos para recordar esses tempos?
Sim, nuns quantos almoços. São muito divertidos. Contam histórias com várias décadas. Uma delas é a que eu costumo contar. É uma história verídica, apropriada para perceber a tal boémia, sobre um tipo fantástico, que morreu recentemente: há quarenta anos, ele era um rapaz com todo o estilo de um galã do cinema italiano.

Do género do Marcello Mastroianni?
Exactamente! E tinha muito sucesso com o mulherio. Um dia, na redacção do jornal, que era vespertino, o chefe de redacção diz: “A partir de amanhã temos mais uma pessoa a trabalhar connosco”. E ele: “Até que enfim! Quem é o gajo?”. E o chefe responde: “Não é um gajo, é uma gaja”. Não havia mulheres nos jornais na altura. No dia seguinte, quando ela chegou, toda a gente olhou automaticamente para o rapaz. Consenso geral: ele vai atirar-se à miúda. E dez minutos depois já ele andava atrás dela, a apresentar as instalações. Sempre muito atencioso. E depois começaram a encontrar-se em sítios muito distantes da redacção. Começou a ser hábito: às seis da tarde a redacção começava a fechar, e ele arrumava as coisas muito discretamente. Às seis e um quarto ele olhava para o relógio e dizia: “Bom, vou-me pôr na alheta”. E assim, a rapariga ficou conhecida como a alheta. (risos) Estas histórias faziam parte do anedotário das noites, e de um certo espírito de malandrice da malta dos jornais.

O Mário publica a Crónica dos Bons Malandros em 1980, em 83 e 86 saem, respectivamente, Histórias do Fim da Rua e À Noite Logo se Vê. Só volta à literatura em 2003, quase vinte anos depois do terceiro romance. Porquê?
Estava a escrever para televisão.

E durante esses anos nunca quis voltar aos livros?
Não tinha tempo. Chegava a escrever duas sitcoms por semana. E o realizador Fernando Ávila, muito mais novo do que eu e já morreu… estes gajos não fumam, lixam-se! Ele tinha trabalhado em Nova Iorque, e ele disse-me que lá, metem dois gajos num hotel, nem podem sair, para escrever uma por semana. E eu, bem, assim não tinha tempo para mais nada. Porque também eu trabalhava na RTP. Mas trabalhei que nem um selvagem nessa altura. Daí esse hiato tão grande.

Mas nesse hiato não surgiu nenhuma ideia?
Todas as ideias que usei para sitcoms na altura poderiam ser transferidas para livro. Eram programas de cinquenta minutos, e ao ritmo da acção dá para escrever, com descrições e tudo mais, um livro com 200 páginas. Eu não queria fazer televisão. Foi muito difícil convencerem-me. A minha praia era a escrita, os livros, os jornais, era o papel branco e as minhas esferográficas. Na televisão tive gosto em fazer algumas coisas, mas nunca achei que aquele mundo me dissesse tanto como a escrita e o jornalismo.

Depois do regresso, ganhou uma regularidade muito grande, publicando desde então quase um livro todos os anos.
Este ano não vai acontecer, tenho muitas ocupações. Cada vez que me convidam para qualquer coisa, seja a sua proposta, por exemplo, é uma pessoa que me está a distinguir com um convite. Escolheu-me por uma razão qualquer. Só posso agradecer aceitando.

A maioria das suas histórias culmina sempre com uma reviravolta, ou twist. Porquê este “hábito”?
Há uma coisa que faz parte da técnica do conto. Um bom conto tem de ter um final surpreendente. Eu podia resumir as minhas histórias a pequenos contos. São mais longos, preenchidos por peripécias. Eu não consigo escrever sem ter a certeza do desenlace da história que estou a imaginar. Quero sempre acabar em cima, e nunca em baixo. Como nas sitcoms.

Se tivesse a possibilidade de escolher outro livro para ocupar o lugar da Crónica como a sua obra mais famosa, qual seria?
O meu segundo livro, Histórias do Fim da Rua, é mais apurado em termos de forma e linguagem. O livro fala de uma rua que vai ser demolida. E isso provoca a demolição das vidas e tudo o que lá se passou. Nessa rua mora um casal em ruptura, e o livro acompanha em paralelo de duas coisas que estão a desaparecer: a rua e o casamento. Tem um lado amargo, sobre a destruição das coisas, que a Crónica não tem. Foi escrito à jornalista. Na altura as Histórias foram recebidas com alguma frieza pela crítica, que estavam à espera de um sucedâneo do outro.

Comemorou recentemente oitenta anos. Ainda mantém um espírito jovem?
Eu continuo a ser um garoto em muitas coisas da minha vida. Adoro traquinices, adoro rir e brincar. Eu não quero parecer o melhor que aquilo que sou, porque um dia posso demonstrar que não o era. Não quero desiludir as pessoas. Mantenho-me fiel às minhas convicções. A minha natureza é a mesma de sempre.

Não pensa regularmente na morte?
Penso numa perspectiva utilitária, tenho de deixar as coisas arrumadas. Eu desde os cinco anos que sei que isto é a prazo. Não se sabe é o prazo. E um gajo chega aos 80 anos e não vive nesse espectro.

Mas ainda tem muito para arrumar?
Precisava aí de uns dois anitos. E vou ter mais.

Falámos de muitas memórias. A sua vida dava um romance, ou mesmo um filme?
Eu não posso dizer isso sem a minha mulher interferir (risos). A minha vida tem particularidades, mas todas as têm. As pessoas podem ter vidas em que, aparentemente, nada acontece, mas no seu cérebro, inventam vidas muito intensas, e às vezes, levar para o papel essas vidas não vividas, pode ser algo extraordinário. Cada ser humano é único, e é espantoso como não há duas pessoas rigorosamente iguais no mundo inteiro.
In https://maquinadeescrever.org/2016/07/0 ... lancolica/
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