The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

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The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

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The Royal Tenenbaums

Realizador: Wes Anderson
Elenco: Gene Hackman, Anjelica Huston, Bill Murray, Gwyneth Paltrow, Ben Stiller, Luke Wilson, Owen Wilson, Danny Glover.

Three grown prodigies, all with a unique genius of some kind, and their mother are staying at the family household. Their father, Royal had left them long ago, and comes back to make things right with his family.
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Samwise
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by Samwise »

Foi o primeiro que vi do Anderson e fiquei logo apanhado. Excelente comédia fatalista, demonstrativa de todas as qualidades e imagens de marca deste cineasta, na adequação perfeita entre estética visual, o modelo narrativo, e a personalidade das personagem face a cada contexto cuidadosamente delimitado de acção. O elenco, como desde então vem sendo hábito, é formado com um constelação de estrelas, que se nota que se estão a divertir à grande dentro da suas peles ficcionais.
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by mansildv »

Samwise wrote: April 29th, 2018, 9:11 pm Foi o primeiro que vi do Anderson e fiquei logo apanhado. Excelente comédia fatalista, demonstrativa de todas as qualidades e imagens de marca deste cineasta, na adequação perfeita entre estética visual, o modelo narrativo, e a personalidade das personagem face a cada contexto cuidadosamente delimitado de acção. O elenco, como desde então vem sendo hábito, é formado com um constelação de estrelas, que se nota que se estão a divertir à grande dentro da suas peles ficcionais.
Também foi o primeiro filme que vi do WA e também fiquei logo apanhado :-))) Tive que ver tudo o que já estava disponível :wink:

Fizeste um apanhado perfeito deste filme e da filmografia dele em geral yes-)
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by mansildv »

The Royal Tenenbaums (2001) - 9/10

O Samwise já disse tudo que há para dizer sobre este filme! Gosto imenso (assim como da restante filmografia do realizador) e é um daqueles títulos que sabe sempre bem rever! :wink:
Ludovico
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by Ludovico »

Quanto a mim, um mau filme disfarçado num bonito "embrulho". É talvez essa a real marca de autor de Anderson como realizador. Como disse, só me faltam ver "O Fantástico Senhor Fox" e a "A Ilha dos Cães" mas já cheguei à conclusão que Anderson é um realizador em que prova ser original nas histórias não é sinónimo da qualidade das obras.
É pena mas não é o único :-( .
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by Samwise »

mansildv wrote: May 17th, 2018, 1:31 pm The Royal Tenenbaums (2001) - 9/10

O Samwise já disse tudo que há para dizer sobre este filme! Gosto imenso (assim como da restante filmografia do realizador) e é um daqueles títulos que sabe sempre bem rever! :wink:
Epá... eu só toquei ao de leve na superfície da parte visível do iceberg. :-))) :-))) :-)))

O cinema dele tem uma série de características e traços formais, que ele cumpre à risca sem perder a dinâmica, e que o tornam mesmo num caso único no cinema contemporâneo. Ele filma as narrativas como a partir de um ponto de vista de uma criança a brincar com personagens do mundo dos adultos, e joga com os cenários e com todos os seus elementos, incluindo os humanos, como se fossem brinquedos. As expressões das personagens também seguem um modelo padronizado muito específico, não são interpretações "normais" da realidade e estão longe de ser naturalistas, muito em particular as faciais, que mesmo quando estão zonas de aperto emocional, não perdem a compostura (permanecem impassíveis e solenes).

Ele filma sempre os planos de frente, com a câmara invariavelmente "direita", e sempre que a tem de mover, nunca apanha o cenário de forma "obliqua". Os "pannings" seguem sempre os objectos, filmando-os de lado, e acompanhado o seu movimento, ou então avançam e recuam para os acompanhar, mas a câmara nunca vira, nunca roda sobre o seu próprio eixo. Ou melhor, quando vira, vira de tal forma rápido - 90º, por norma - que esse movimento é apenas uma outra forma dinâmica de apresentar um cut em relação ao próximo plano, que volta a ser "de frente".

Mansildv, lembro-me de uma sequência no Darjeeling em que eles estão à espera da camioneta para se irem embora da povoação, e a câmara, que está no centro do cenário (na estrada) faz vários movimentos destes, em 360º, mas fixando-se apenas em 4 planos de imagem diferentes, sempre de frente, cada um perfeitamente alinhado em relação aos restantes - ora neles, ora no miúdo que espera a camioneta, ora no cenário que está em frente deles, ora na estrada por onde a camioneta há-de seguir mais tarde. Tenho isto perfeitamente na memória, e nunca mais me vou esquecer dessa sequência. E a brincar, a brincar (literalmente), em poucos segundos ele sintetiza e apresenta todo o estado físico e emocional daquele momento, naquela povoação. Muito, muito bom!
Last edited by Samwise on May 17th, 2018, 6:08 pm, edited 1 time in total.
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by Samwise »

Ludovico wrote: May 17th, 2018, 3:41 pm Quanto a mim, um mau filme disfarçado num bonito "embrulho". É talvez essa a real marca de autor de Anderson como realizador.
Ludovico, olha que por baixo do verniz há muito (comportamento humano genuíno) para observar...

Falando genericamente, dá-me ideia que as personagens que ele posiciona no seu colorido cenário-brincadeira, formal e esteticamente representado por compartimentos cheios de detalhes e texturas, são pessoas a quem a vida passou uma rasteira a determinada altura, e que estão agora a tentar reorientar-se de forma a corrigir uma trajectória trágica de que não estavam à espera. Pessoas que necessitam de estabelecer regras para se sentirem seguras e "organizadas", mas que estão sempre a ser atraiçoadas com as voltas que o mundo dá (sobretudo atraiçoadas pelas personalidades e desejos diferentes naqueles que lhes são próximos e que não correspondem ao padrão imaginado/desejado). E é neste espaço de confronto permanente entre um mundo caótico e inesperado e a vontade e expectativa pessoal de cada personagem que se constrói em grande parte a linha narrativa. As divisões compartimentadas e filmadas sempre de forma alinhada e direita funcionam também como uma representação dessa necessidade de regulamento do caos por parte das personagens - uma tentativa cíclica de eleborar um plano para as etapas seguintes que só encontra paralelo na frequência com que é contrariado e deitado abaixo. Os filmes dele estão cheios destas dinâmicas oscilantes de expectativas planeadas e realidades que as contrariam. Há por vezes planos quase burlescos em que se atropelam e sobrepõem os elementos e acções que correm mal - em sequência e em simultâneo, num contraste cómico com a formalidade imposta pela câmara...
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by Ludovico »

Samwise wrote: May 17th, 2018, 4:32 pm
Ludovico wrote: May 17th, 2018, 3:41 pm Quanto a mim, um mau filme disfarçado num bonito "embrulho". É talvez essa a real marca de autor de Anderson como realizador.
Ludovico, olha que por baixo do verniz há muito (comportamento humano genuíno) para observar...

Falando genericamente, dá-me ideia que as personagens que ele posiciona no seu colorido cenário-brincadeira, formal e esteticamente representado por compartimentos cheios de detalhes e texturas, são pessoas a quem a vida passou uma rasteira a determinada altura, e que estão agora a tentar reorientar-se de forma a corrigir uma trajectória trágica de que não estavam à espera. Pessoas que necessitam de estabelecer regras para se sentirem seguras e "organizadas", mas que estão sempre a ser atraiçoadas com as voltas que o mundo dá (sobretudo atraiçoadas pelas personalidades e desejos diferentes naqueles que lhes são próximos e que não correspondem ao padrão imaginado/desejado). E é neste espaço de confronto permanente entre um mundo caótico e inesperado e a vontade e expectativa pessoal de cada personagem que se constrói em grande parte a linha narrativa. As divisões compartimentadas e filmadas sempre de forma alinhada e direita funcionam também como uma representação dessa necessidade de regulamento do caos por parte das personagens - uma tentativa cíclica de encontrar um plano para as próximas etapas que só encontra um paralelo na frequência com que é contrariado e deitado abaixo. Os filmes dele estão cheios destas dinâmicas oscilantes de expectativas planeadas e realidades que as contrariam. Há por vezes planos quase burlescos em que se atropelam e sobrepõem os elementos e acções que correm mal - em sequência e em simultâneo, num contraste cómico com a formalidade imposta pela câmara...
Caro Samwise. Fiquei muito encantado com a tua reflexão mas se há filmes que não merecem tão bons adjetivos como tu tão bem escreveste são os filmes de Anderson. O cinema de Anderson busca grandes atores e técnicos, sem dúvida mas não faz isso cinema de qualidade. Ele faz isso para disfarçar a pobreza enorme dos conteúdos reais dos guiões dos filmes dele que é ele próprio a maioria das vezes. São filmes todos eles fechados dentro de si mesmos, vivem para o umbigo de si mesmos. Adoro cinema com ALMA,ARRAGANHO E BONOMIA.O cinema dele quer isso mas da maneira como ele trabalha o resultado é oposto. Só de pensar no entusiasmo critico do desastroso "Grande Budapeste Hotel" teve e que também foi aos Óscares,arrepia-me no mau sentido.
Todos os filmes que vi de Anderson até ao momento não tendo visto "O fantástico Senhor Raposo" e "A Ilha dos Cães" levam 4 em 10.
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by Samwise »

Ludovico, quis apenas partilhar algumas características "de autor" importantes associadas à definição da natureza humana, transversais à obra, e que se me afiguram como virtudes no cinema do Wes Anderson. A forma como depois cada um olha para elas, com maior ou menor grau de ligação à vertente técnica e estética, e se isso insufla ou não algum conteúdo inlectual na zona que identificas como "sofredora de pobreza de conteúdos", são questões que ficam fora da área criação artística. As personagens de relevo nos filmes dele são, como todos nós, seres à procura do seu lugar no mundo.

Os meus filmes favoritos dele são precisamente o que dá o título a este tópico (acho o texto muito bom, mesmo muito bom, e uma componente muito enriquecedora para a tal definição muito precisa de personagens), e o do Hotel (não foram só os críticos que ficaram babados :mrgreen: ).

Também não vi "O fantástico Senhor Raposo" nem "A Ilha dos Cães".
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by Samwise »

Quanto mais penso no assunto, mais "riqueza de contéudos" associo à obra deste cineasta. A metáfora do iceberg que utilizei mais lá para cima começa a ter o seu volume debaixo de água bastante preenchido. Acho que vou passar novamente os olhos pela sua filmografia (aproveitando para ver os que me faltam), de forma a recolher "elementos de prova".

Ludovico, viste o Moonrise Kingdom? O filme está carregado de elementos subversivos (no sentido em que contrastam fortemente com o embrulho cândido e bonitinho da "camada de cima") muito interessantes... e perturbantes...
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by Samwise »

Bom, este filme eleva a complexidade do universo Anderson para níveis insanos. Ainda não cheguei a meio e já levo duas folhas A4 cheias de anotações...

Uma coisa é certa, está bem longe de ser uma obra vazia a nível de conteúdo humano, muito pelo contrário, e bem para lá da questão do "embrulho estético" (que, diga-se, também levou um facelift gargantuesco e tem muito por onde deleitar salut-) ). O problema (se quisermos colocar as coisas por esse prisma) é que exige atenção e reflexão - as camadas e texturas são tantas que é difícil assimilar tudo de uma assentada. Poder-se-ia apreciar-se o filme apenas pelo seu "valor facial", mas não seria a mesma coisa. :-))) :-))) :-)))

Tanto aqui como no Rushmore, o território emocional de eleição explorado pelo Anderson é o conflito entre os sentimentos pessoais e a frieza insensível e implacável da realidade em situações de traição ou rejeição. Ou seja, no momento em que sonhos e expectativas (aqueles que são estruturais na vida de alguém, isto é) caem por terra, como reagem as personagens. E a racionalidade é a primeira coisa a sair pela janela. Todas as atitudes e comportamentos são definidos pelas emoções e "estados de alma". A "batalha" não é interna, na mente de cada personagem. Não é sobre isso que ele se debruça. É no choque contra a realidade. É isto que é a matéria prima do cineasta nestes dois filmes, pelo menos. Mas se no Rushmore a coisa estava mais delimitada - tratava-se de um triângulo, três personagens, e uma situação de amizade e outra de amor no sentido sexual do termo -, no The Royal Tenenbaums é toda uma família e amizades próximas (com 7 ou 8 personagens centrais), as situações de amor e de amizade são de várias ordens e feitios, e para complicar a coisa há todo um histórico freudiano de emoções reprimidas que remonta à infância.
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

Post by Samwise »

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"And now for something completely different..."

The Royal Tenenbaums é um daqueles casos em que apetece invocar o intertítulo popularizado décadas antes pelos Monty Python, dada a sua incategorizável aparência de OVNI cinematográfico. Em 2001 (não de "Uma Odisseia no Espaço", mas de uma "Odisseia na casa Playmobil"), ninguém estaria à espera de uma "peça de câmara" tão ambiciosa no seu escopo, tão meticulosa na sua concepção formal, e tão radicalmente inovadora seu modelo estrutural, uma obra que colocaria por mérito próprio Wes Anderson no mapa artístico internacional, ao mesmo tempo que estabeleceria os pilares idiossincráticos para praticamente todo o seu trabalho futuro. O exercício pode ser fútil, mas devem contar-se pelos dedos das mãos a quantidade de cineastas que é possível identificar olhando apenas para meia dúzia de fotogramas retirados dos seus filmes. Anderson está neste grupo, e tem uma presença visual tão impactante e distinta que bastaria um fotograma para ficarmos a saber que uma obra lhe pertence. Uma obra a partir de The Royal Tenembaums, isto é. Anderson não tem nada de significativamente novo para nos contar, tem antes uma forma diferente de o formular e transmitir, e isso faz toda a diferença no mundo artístico.

O filme representa o primeiro mergulho "a sério", ainda que regado a humor negro, naquela que é a temática nuclear dominante no corpo de trabalho do seu autor: a Família (que nem sempre corresponde à "família biológica") enquanto sistema orgânico/dinâmico ao mesmo tempo agregador e desagregador. Mas ao contrário de por exemplo Ingmar Bergman ou Woody Allen, outros cineastas "psicanalíticos" e bastante teatrais que focam frequentemente famílias "em ebulição" e estados de "incomunicabilidade emocional", Anderson revela-se pouco interessando em explorar as provações do desejo e da infidelidade conjugal, ou em construir as suas personagens a partir de diálogos/combates intensos. O seu território é outro: o da descoberta do mundo exterior (exterior à zona de conforto, ao porto de abrigo familiar) através dos ritos de passagem à idade adulta, a percepção da necessidade concreta para os vários papéis/compartimentos sociais, a confrontação disruptora (aniquiladora, mesmo) entre estas novas realidades apreendidas e os sentimentos e conhecimentos que até então eram dados adquiridos, e o domínio esmagador das emoções sobre a racionalidade nos momentos de crise. The Royal Tenenbaums é então um filme sobre uma família desagregada (pais separados, filhos decepcionados com os pais, irmãos afastados entre si) que começa um lento processo de reagregação, ou, pelo menos, reconciliação - processo esse que virá a revelar-se tão espinhoso e doloroso como o anterior.

É em torno deste conceito de família que Anderson conceptualiza o espaço geográfico e o preenche esteticamente. À família enquanto unidade elementar coesa, o "lar emocional", corresponde em representação visual uma casa, um edifício (ou um navio, um campo de escuteiros, um hotel...), ou seja, um "lar físico", também ele composto por divisórias e compartimentos autónomos, cada um com as suas idiossincrasias e particularidades. Estabelece-se uma ligação estreita a cada personagem, e também ao todo unitário. A "estética Playmobil" de Anderson não é portanto vazia, não existe apenas como "fetiche visual", não está lá para se mostrar como "diferente" e passar por "fogo de artifício". O "artifício" aqui é outro, no sentido de "engenho e arte". Toda a estética faz parte de um modelo narrativo orgânico, numa lógica de complementaridade - é a carne que cobre o esqueleto e protege os órgão. Os temas, as personagens, as acções, os estados de espírito, cada elemento tem a sua representação visual simbólica, um meticuloso invólucro estético contextualizador. Daí que a decoração, as texturas, os padrões, as cores e as luzes, o vestuário e acessórios, a composição dos elementos no espaço, tudo isto tenha um propósito simbólico particular, geometricamente definido numa espécie de harmonia racionalizadora que situa e substancializa as personagens. Como no teatro. Como nas marionetas. Um homem sem família não é nada, não é ninguém, da mesma forma que um homem sem casa é um sem abrigo.

Já em Bottle Rocket e Rushmore, os seus filmes anteriores, Anderson havia colocado em cena personagens disfuncionais, mas que compreendiam e procuravam incessantemente um espaço familiar a que pudessem pertencer, e sobretudo que os pudesse preencher, travando o sentido dominante de desenraizamento . Em Bottle Rocket a personagem de Owen Wilson tentava reaproximar-se do irmão, trazê-lo para o meio de um elaborado plano de vida conjunta envolvendo assaltos, mas ao mesmo tempo necessitava de se integrar num grupo de criminosos já com algum peso no meio - e desse grupo conserva uma fotografia que venera como se fosse uma antiga foto de família. Em Rushmore, é a personagem de Jason Schwartzman que deseja à viva força fazer parte da "família da instituição", sendo que pelo caminho vai encontrar uma família espiritual substituta à biológica (acerca da qual se envergonha): Bill Murray é um industrial profundamente decepcionado com o casamento e a família que lhe "calharam na rifa" (mulher e filhos), e Olivia Williams uma jovem professora que não ultrapassou ainda a dor da morte do marido. Família, Família, Família. Família = Felicidade. Supostamente.

A história de The Royal Tenenbaums, narrada como se da leitura de um romance se tratasse (com capítulos e tudo), é simples de resumir: o pai (Gene Hackman) vive há anos num hotel de luxo, desde que se separou da mãe (Angelica Huston). Numa altura em que vê as suas capacidades financeiras chegarem ao zero, engendra uma artimanha manhosa para poder regressar ao seu lar e à sua casa. O plano é informar a sua família de que tem um cancro terminal, de que lhe restam poucas semanas de vida, e de que gostaria de poder reconciliar-se com os seus antes de partir. Esta notícia vai fazer com que os três filhos (Ben Stiller, Luke Wilson e Gwyneth Paltrow), outrora crianças sobredotadas e agora jovens-adultos desenraizados em conflito com o mundo, regressem também a casa. A reunião inesperada, e o contexto que a determina, vão trazer ao de cima traumas do passado e feridas por sarar.

Neste contexto, entram em cena (literalmente) os estereótipos que habitualmente preenchem os filmes de Anderson: o adulto-criança, incapaz de crescer e sem qualquer vontade de assumir as suas responsabilidades (o papá Tenenbaum), que neste filme também acumula o papel de "master schemer", vivendo de habilidades obscuras e esquemas manhosos; a criança-adulto, precoce na aplicação intensiva e disciplinada da sua sabedoria racional (um dos irmãos, interpretado por Ben Stiller); a criança-adulto que é o oposto da primeira, e que vive eternamente refém das condições ditadas pelas suas emoções (o outro irmão, Luke Wilson); a criança-adulto reprimida, que se fecha e esconde dentro de si própria, mantendo aprisionados e trancados a sete chaves todo o tipo de ressentimentos, e que se impõe a si mesmo escapatórias de auto-flagelação e da procura socialmente rebelde e transgressora do hedonismo (a irmã, Gwyneth Paltrow) ; e ainda o "farol orientador", o pilar tranquilo e sereno que resiste e não quebra, e que ao manter-se forte perante as adversidades mantém também intacta a noção e a recordação de lar, casa, família, adaptando-se ao passar do tempo e aos contextos de cada situação (a mamã Tanenbaum, Angelica Huston, que virá a repetir o papel em mais dois filmes de Anderson). Em torno do núcleo familiar gravitam ainda um pretendente educado e honesto à mão da matriarca (Danny Glover), um psicólogo de renome que entretanto casou com Paltrow (Bill Murray), um amigo de infância, romancista de sucesso, que mantém mais do que simples relações de amizade com os três irmãos (Owen Wilson), e, last but not the least, um criado indiano que trabalha em casa da família desde os tempos idos de felicidade, mas que é um "informador" de Hackman (Kumar Pallana).

A ementa da nova fase de vida destes elementos, na sua trajectória de aproximação, compreende rejeições, traições, mentiras e ocultações, depressões, provações, incomunicabilidade, estados de isolamento extremo e até uma tentativa de suicídio, tudo servido numa narrativa fragmentada, em mosaico, com algumas viagens ao passado, a um porto de infância em que as coisas ainda corriam minimamente bem (há uma sequência notável, situada no presente mas ancorada nesse passado, em que Ben Stiller explode de raiva e confronta Gene Hackman dentro de um armário em que as prateleiras estão apinhadas de jogos de mesa infantis). E se estes temas parecem à partida matéria para outro género de filme mais "dramático" e sombrio, Anderson subverte as aproximações ao real e impõe um tom constante de leve ironia, surrealismo e comédia declarada, evitando envolver-se a fundo na exploração da dor. A sobriedade emocional é reforçada por uma certa inexpressividade nas interpretações - uma escolha deliberada que determina que o ambiente permaneça sempre relativamente leve, ao mesmo tempo que mantém a coesão no seu mundo de "estética Playmobil". O resultado é um microcosmo familiar laboratorial, um ambiente de "caos calmo", controlado, em que Anderson cruza arte (diversas "artes", incluindo até a moda) com entretenimento numa mescla refinada.

The Royal Tenenbaums foi de tal forma bem sucedido nas intenções e nos resultados que significou para Wes Anderson um "segundo nascimento" artístico. Olhando agora para o passado, e para a sua carreira desde então, esta foi a forja inicial e iniciática do seu cunho autoral. É relativamente fácil de perceber as razões que levam a uma polarização nos gostos e opiniões sobre este filme, e sobre a sua filmografia em geral, não havendo espaço para a indiferença. Da minha parte, apenas um pequeno queixume (que resolvo com segundas visualizações): uma vez que a linguagem narrativa e a transmissão de ideias passam em larga escala pelo contexto proporcionado pelos "sets", é por vezes difícil assimilar e apreciar em simultâneo tudo o que aparece no ecrã. A sumptuosidade gráfica, riqueza do detalhe e a precisão do traço proporcionam um êxtase visual quase intoxicante, ficando na memória de cena para cena - chega-se ao final do filme e temos uma orquestra de cenários coloridos e personagens esdrúxulas a tocar a concertina no cérebro. Mas é uma óptima sensação de desnorte...

Obviamente um 10/10.
Last edited by Samwise on August 30th, 2018, 10:28 am, edited 1 time in total.
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Re: The Royal Tenenbaums (2001) - Wes Anderson

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Os fotogramas que se seguem foram todos captados nos primeiros 8 minutos de filme, em que é feita uma introdução à história e aos personagens em "voz off" (pelo Alec Baldwin), e ao som de uma cover de Hey, Jude dos Beatles.

São 8 minutos de pura orgia Andersoniana, num dos inícios mais deslumbrantes e surpreendentes que alguma vez vi no cinema. Está aqui o melhor resumo que pode ser feito do cinema deste autor, e vale a pena ver duas ou três vezes de seguida para captar os pormenores com atenção. Reparem na composição de cada "quadro", e até o pormenor da lente que distorce ligeiramente o cenário, curvando-o, tornando-o concêntrico, como se estivéssemos a observar o cenário através de um óculo.

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