"And now for something completely different..."
The Royal Tenenbaums é um daqueles casos em que apetece invocar o intertítulo popularizado décadas antes pelos Monty Python, dada a sua incategorizável aparência de OVNI cinematográfico. Em 2001 (não de "Uma Odisseia no Espaço", mas de uma "Odisseia na casa Playmobil"), ninguém estaria à espera de uma "peça de câmara" tão ambiciosa no seu escopo, tão meticulosa na sua concepção formal, e tão radicalmente inovadora seu modelo estrutural, uma obra que colocaria por mérito próprio Wes Anderson no mapa artístico internacional, ao mesmo tempo que estabeleceria os pilares idiossincráticos para praticamente todo o seu trabalho futuro. O exercício pode ser fútil, mas devem contar-se pelos dedos das mãos a quantidade de cineastas que é possível identificar olhando apenas para meia dúzia de fotogramas retirados dos seus filmes. Anderson está neste grupo, e tem uma presença visual tão impactante e distinta que bastaria um fotograma para ficarmos a saber que uma obra lhe pertence. Uma obra a partir de
The Royal Tenembaums, isto é. Anderson não tem nada de significativamente novo para nos contar, tem antes uma forma diferente de o formular e transmitir, e isso faz toda a diferença no mundo artístico.
O filme representa o primeiro mergulho "a sério", ainda que regado a humor negro, naquela que é a temática nuclear dominante no corpo de trabalho do seu autor: a Família (que nem sempre corresponde à "família biológica") enquanto sistema orgânico/dinâmico ao mesmo tempo agregador e desagregador. Mas ao contrário de por exemplo Ingmar Bergman ou Woody Allen, outros cineastas "psicanalíticos" e bastante teatrais que focam frequentemente famílias "em ebulição" e estados de "incomunicabilidade emocional", Anderson revela-se pouco interessando em explorar as provações do desejo e da infidelidade conjugal, ou em construir as suas personagens a partir de diálogos/combates intensos. O seu território é outro: o da descoberta do mundo exterior (exterior à zona de conforto, ao porto de abrigo familiar) através dos ritos de passagem à idade adulta, a percepção da necessidade concreta para os vários papéis/compartimentos sociais, a confrontação disruptora (aniquiladora, mesmo) entre estas novas realidades apreendidas e os sentimentos e conhecimentos que até então eram dados adquiridos, e o domínio esmagador das emoções sobre a racionalidade nos momentos de crise.
The Royal Tenenbaums é então um filme sobre uma família desagregada (pais separados, filhos decepcionados com os pais, irmãos afastados entre si) que começa um lento processo de reagregação, ou, pelo menos, reconciliação - processo esse que virá a revelar-se tão espinhoso e doloroso como o anterior.
É em torno deste conceito de família que Anderson conceptualiza o espaço geográfico e o preenche esteticamente. À família enquanto unidade elementar coesa, o "
lar emocional", corresponde em representação visual uma casa, um edifício (ou um navio, um campo de escuteiros, um hotel...), ou seja, um "
lar físico", também ele composto por divisórias e compartimentos autónomos, cada um com as suas idiossincrasias e particularidades. Estabelece-se uma ligação estreita a cada personagem, e também ao todo unitário. A "estética Playmobil" de Anderson não é portanto vazia, não existe apenas como "fetiche visual", não está lá para se mostrar como "diferente" e passar por "fogo de artifício". O "artifício" aqui é outro, no sentido de "engenho e arte". Toda a estética faz parte de um modelo narrativo orgânico, numa lógica de complementaridade - é a carne que cobre o esqueleto e protege os órgão. Os temas, as personagens, as acções, os estados de espírito, cada elemento tem a sua representação visual simbólica, um meticuloso invólucro estético contextualizador. Daí que a decoração, as texturas, os padrões, as cores e as luzes, o vestuário e acessórios, a composição dos elementos no espaço, tudo isto tenha um propósito simbólico particular, geometricamente definido numa espécie de harmonia racionalizadora que situa e substancializa as personagens. Como no teatro. Como nas marionetas. Um homem sem família não é nada, não é ninguém, da mesma forma que um homem sem casa é um sem abrigo.
Já em
Bottle Rocket e
Rushmore, os seus filmes anteriores, Anderson havia colocado em cena personagens disfuncionais, mas que compreendiam e procuravam incessantemente um espaço familiar a que pudessem pertencer, e sobretudo que os pudesse preencher, travando o sentido dominante de desenraizamento . Em
Bottle Rocket a personagem de Owen Wilson tentava reaproximar-se do irmão, trazê-lo para o meio de um elaborado plano de vida conjunta envolvendo assaltos, mas ao mesmo tempo necessitava de se integrar num grupo de criminosos já com algum peso no meio - e desse grupo conserva uma fotografia que venera como se fosse uma antiga foto de família. Em
Rushmore, é a personagem de Jason Schwartzman que deseja à viva força fazer parte da "família da instituição", sendo que pelo caminho vai encontrar uma família espiritual substituta à biológica (acerca da qual se envergonha): Bill Murray é um industrial profundamente decepcionado com o casamento e a família que lhe "calharam na rifa" (mulher e filhos), e Olivia Williams uma jovem professora que não ultrapassou ainda a dor da morte do marido. Família, Família, Família. Família = Felicidade. Supostamente.
A história de
The Royal Tenenbaums, narrada como se da leitura de um romance se tratasse (com capítulos e tudo), é simples de resumir: o pai (Gene Hackman) vive há anos num hotel de luxo, desde que se separou da mãe (Angelica Huston). Numa altura em que vê as suas capacidades financeiras chegarem ao zero, engendra uma artimanha manhosa para poder regressar ao seu lar e à sua casa. O plano é informar a sua família de que tem um cancro terminal, de que lhe restam poucas semanas de vida, e de que gostaria de poder reconciliar-se com os seus antes de partir. Esta notícia vai fazer com que os três filhos (Ben Stiller, Luke Wilson e Gwyneth Paltrow), outrora crianças sobredotadas e agora jovens-adultos desenraizados em conflito com o mundo, regressem também a casa. A reunião inesperada, e o contexto que a determina, vão trazer ao de cima traumas do passado e feridas por sarar.
Neste contexto, entram em cena (literalmente) os estereótipos que habitualmente preenchem os filmes de Anderson: o adulto-criança, incapaz de crescer e sem qualquer vontade de assumir as suas responsabilidades (o papá Tenenbaum), que neste filme também acumula o papel de "
master schemer", vivendo de habilidades obscuras e esquemas manhosos; a criança-adulto, precoce na aplicação intensiva e disciplinada da sua sabedoria racional (um dos irmãos, interpretado por Ben Stiller); a criança-adulto que é o oposto da primeira, e que vive eternamente refém das condições ditadas pelas suas emoções (o outro irmão, Luke Wilson); a criança-adulto reprimida, que se fecha e esconde dentro de si própria, mantendo aprisionados e trancados a sete chaves todo o tipo de ressentimentos, e que se impõe a si mesmo escapatórias de auto-flagelação e da procura socialmente rebelde e transgressora do hedonismo (a irmã, Gwyneth Paltrow) ; e ainda o "farol orientador", o pilar tranquilo e sereno que resiste e não quebra, e que ao manter-se forte perante as adversidades mantém também intacta a noção e a recordação de lar, casa, família, adaptando-se ao passar do tempo e aos contextos de cada situação (a mamã Tanenbaum, Angelica Huston, que virá a repetir o papel em mais dois filmes de Anderson). Em torno do núcleo familiar gravitam ainda um pretendente educado e honesto à mão da matriarca (Danny Glover), um psicólogo de renome que entretanto casou com Paltrow (Bill Murray), um amigo de infância, romancista de sucesso, que mantém mais do que simples relações de amizade com os três irmãos (Owen Wilson), e,
last but not the least, um criado indiano que trabalha em casa da família desde os tempos idos de felicidade, mas que é um "informador" de Hackman (Kumar Pallana).
A ementa da nova fase de vida destes elementos, na sua trajectória de aproximação, compreende rejeições, traições, mentiras e ocultações, depressões, provações, incomunicabilidade, estados de isolamento extremo e até uma tentativa de suicídio, tudo servido numa narrativa fragmentada, em mosaico, com algumas viagens ao passado, a um porto de infância em que as coisas ainda corriam minimamente bem (há uma sequência notável, situada no presente mas ancorada
nesse passado, em que Ben Stiller explode de raiva e confronta Gene Hackman dentro de um armário em que as prateleiras estão apinhadas de jogos de mesa infantis). E se estes temas parecem à partida matéria para outro género de filme mais "dramático" e sombrio, Anderson subverte as aproximações ao real e impõe um tom constante de leve ironia, surrealismo e comédia declarada, evitando envolver-se a fundo na exploração da dor. A sobriedade emocional é reforçada por uma certa inexpressividade nas interpretações - uma escolha deliberada que determina que o ambiente permaneça sempre relativamente leve, ao mesmo tempo que mantém a coesão no seu mundo de "estética Playmobil". O resultado é um microcosmo familiar laboratorial, um ambiente de "caos calmo", controlado, em que Anderson cruza arte (diversas "artes", incluindo até a moda) com entretenimento numa mescla refinada.
The Royal Tenenbaums foi de tal forma bem sucedido nas intenções e nos resultados que significou para Wes Anderson um "segundo nascimento" artístico. Olhando agora para o passado, e para a sua carreira desde então, esta foi a forja inicial e iniciática do seu cunho autoral. É relativamente fácil de perceber as razões que levam a uma polarização nos gostos e opiniões sobre este filme, e sobre a sua filmografia em geral, não havendo espaço para a indiferença. Da minha parte, apenas um pequeno queixume (que resolvo com segundas visualizações): uma vez que a linguagem narrativa e a transmissão de ideias passam em larga escala pelo contexto proporcionado pelos "sets", é por vezes difícil assimilar e apreciar em simultâneo tudo o que aparece no ecrã. A sumptuosidade gráfica, riqueza do detalhe e a precisão do traço proporcionam um êxtase visual quase intoxicante, ficando na memória de cena para cena - chega-se ao final do filme e temos uma orquestra de cenários coloridos e personagens esdrúxulas a tocar a concertina no cérebro. Mas é uma óptima sensação de desnorte...
Obviamente um 10/10.