Silence (2016) - Martin Scorsese

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Samwise
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by Samwise »

PanterA wrote:Este também não quero perde-lo no cinema. Imagino é que as nossas salas só lá tenham 1 ou 2 pessoas para o ver. O que é bom para mim que não gosto de ver a sala o mais vazia possível. :-P
Por acaso acho que este não vai ser um desses filmes com as salas às moscas. A temática abordada, o facto de ser uma "produção de prestígio", vai puxar uma certa fatia mais religiosa da população, e de mais idade, ao cinema.

Por outro lado, não haver filas para os bilhetes a dar a volta ao quarteirão... :-)))
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PanterA
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by PanterA »

Se eu quando fui ver o Star Wars, que é Star Wars na sessão da 00h30 só lá estavam meia dúzia de pessoas, para um filme com um pace lento, introspectivo e nada amigável da maior parte do público em geral, eu acho que a sala vai estar mesmo ás moscas. A menos que o pessoal vá para lá por ter haver directa e indirectamente com Portugal e há sempre aquela curiosidade para ver o que dizem de nós. :lol:

Pelo menos aqui em Viseu tenho quase a certeza que vai ser assim, nos outros lados não sei. Só espero é que tenham o filme pelo menos 2 semanitas lá, porque calculo se não tiver lucro que o arrancam dias depois da estreia como já aconteceu.
paupau
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by paupau »

Scorsese a provar mais uma vez que se encontra numa liga à parte no Cinema Americano, com mais um grande filme de enorme, enorme complexidade emocional e inteletual, cuja visualização irá de certeza levantar questões sérias com largas implicações morais/filosóficas/éticas em quem a ele assistir.
Há vários Silêncios neste filme, sendo o principal o Silêncio de Deus, que porventura já não era abordado desta forma desde a "Trilogia da Fé" do Bergman já nos idos de 60. Já todos nos questionamos porque razão Deus permite que haja tanto sofrimento no Mundo ? Porque não intervém, etc? Como encaramos nós o sofrimento do outro e como conciliámos a nossa Fé com isso?
O martírio que passam as personagens vai provocar uma série de respostas diferentes: os que permanecem inquebrantáveis mesmo sob tortura, os que renegam publicamente sua Fé para "inglês ver", etc? Qual a abordagem mais correta e como determinar isso? Será tão condenável salvar a sua vida através da ofensa a um objeto, mesmo que imbuído de um simbolismo sagrado? Há coisas que cada um vai reagir de acordo com o grau da sua fé pessoal, não necessariamente da sua religião, pois se aqui na Ásia os Jesuítas tavam no receiving end of the stick, na Europa e Américas não era assim... Este filme é daqueles que dá para pensar durante dias ou semanas.
Scorsese tem grande cuidado em explorar todas estas vertentes, bem como o contexto sócio cultural do Japão e o porquê de a religião cristã ser lá um atentado ao Estado. Algo de semelhante se passou com a China há muito pouco tempo e exemplos não faltarão.
O filme está muito bem construído em todos os aspetos: gostei muito da fotografia a imitar um quadro no flashback inicial (depois fica mais naturalista);os atores estão todos muito bem, com destaque para o Garfield e para o Inquisidor Inoue;uma montagem bem mais discreta que o habitual, não há grandes showoff's. Fiquei surpreendido em existir crédito para OST, apenas ouvi os tambores e flautas japonesas em duas ocasiões, mas nada que não tivesse ouvido em dezenas de filmes japoneses, não pareceu nada criado de propósito.
Público excelente no Cinema Ideal, em várias partes o som do filme é desligado completamente e não se ouvia um pio que fosse na sala yes-)
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Samwise
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by Samwise »

paupau wrote: Há vários Silêncios neste filme, sendo o principal o Silêncio de Deus, que porventura já não era abordado desta forma desde a "Trilogia da Fé" do Bergman já nos idos de 60. Já todos nos questionamos porque razão Deus permite que haja tanto sofrimento no Mundo ? Porque não intervém, etc? Como encaramos nós o sofrimento do outro e como conciliámos a nossa Fé com isso?
Isto é bem lembrado (e ocorre-me juntar ao grupo, a propósito do silêncio e do sofrimento, o Persona) mas se a temática sobre a qual se debruçam os realizadores é semelhante, as abordagens parecem-me bem diferentes. Acho, porque ainda não vi o do Scorsese ...

Enorme vontade de ver este filme, que tem suscitado textos de imprensa vindos de muitos quadrantes sociais.
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by rui sousa »

PanterA wrote:Se eu quando fui ver o Star Wars, que é Star Wars na sessão da 00h30 só lá estavam meia dúzia de pessoas, para um filme com um pace lento, introspectivo e nada amigável da maior parte do público em geral, eu acho que a sala vai estar mesmo ás moscas. A menos que o pessoal vá para lá por ter haver directa e indirectamente com Portugal e há sempre aquela curiosidade para ver o que dizem de nós. :lol:

Pelo menos aqui em Viseu tenho quase a certeza que vai ser assim, nos outros lados não sei. Só espero é que tenham o filme pelo menos 2 semanitas lá, porque calculo se não tiver lucro que o arrancam dias depois da estreia como já aconteceu.
Por acaso está a ser um filme bastante "concorrido" - na sessão a que fui, em Lisboa, a sala estava muito bem composta. Foi o filme mais visto no passado fim de semana, o que é óptimo! yes-) O facto de existirem milhentas salas de cinema, num país tão pequenino, a passarem a mesma meia dúzia de filmes é que poderá dar uma ideia errada do box-office. :lol:

Saí da sala com tanto que reflectir... não sendo a obra prima por muitos anunciada, foi bom ver que Scorsese ainda pode ser o anti-Scorsese. Melhor dizendo, não encontrei nada aqui de significativo que tivesse visto noutros filmes dele (nem naqueles que abordam temáticas religiosas). Provoca opiniões tão dispersas, e é tão bom que assim seja - mostra que é um realizador que ainda sabe "mexer" com o espírito dos seus espectadores.

E será mesmo o Silêncio de Deus, aquilo de que aqui se fala? Na minha perspectiva de pessoa que foi pseudo-crente durante muitos anos, que o deixou de o ser ao entender que durante muito tempo vivia e pensava como se não fosse um crente (daí que não fazia sentido continuar inserido em algo com que não me identificava - mesmo que seja prática comum no catolicismo, diga-se), creio que o filme é muito mais ambíguo. Não toma um partido e, ao mesmo tempo, dá matéria suficiente para apoiar religiosos e ateus. É um filme verdadeiramente fascinante! salut-)

Agora, que venha o Irishman! :lol:
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by PanterA »

De uma maneira ou de outra acabei por ter razão, porque o filme apenas está numa sala de cinema e numa sessão da treta. Por este andar é provável que nem o vá lá ver.
paupau
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by paupau »

Bolas, perdi um texto que tava a escrever...
Sam, a temática é semelhante, mas forma e conteúdo são totalmente diferentes. O Scorsese tem outra empatia e fascínio pelo material, o Bergman é comparativamente um bloco de gelo.

Como diz o Rui, o Silêncio de Deus é apenas uma parte da questão. O filme aborda e de forma exaustiva muitas outras questões e há um enorme respeito pelas duas partes, com a preocupação de abordar os dois lados e sem fazer juízos de valor. Nota-se para onde foram tantos anos de preparação.

Existe ainda a temática da Tentação, mas por um prisma completamente diferente da Última Tentação de Cristo, mostrando que estamos perante um autor total, sempre uma faceta ligeiramente diferente em cada filme

O medo da Academia às polémicas religiosas roubou umas nomeações a este filme que bem as merecia e sem necessidade disso, pelo menos até ver...contudo tenho a certeza que será um filme que perdurará na memória dos amantes de Cinema nas próximas décadas, mesmo sem ser realmente uma obra prima como o Rui afirmou. Pouco falta, contudo.
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Samwise
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by Samwise »

Fui ver ontem. Não me recordo da última vez em que um filme me colocou tanto alimento intelectual como este, e também não me recordo do último filme que fui ver ao cinema e saí de lá completamente satisfeito, preenchido, extasiado... e exausto com a experiência.

É o melhor Scorsese desde há muito tempo - e isto sem querer menorizar os seus outros filmes "recentes", que também muito aprecio.

Comentário curto, para já.

10/10
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Samwise
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by Samwise »

Algumas notas rápidas.

- Silêncio no título, Silêncio de Deus no modo como (não) fala com os seus devotos, silêncio ainda na banda sonora. Apesar de vir mencionada nos créditos finais, não dei em momento algum por haver sons intrusivos que não pertencessem ao contexto narrativo. Apenas as vozes humanas, as lamentações de dor, o som de instrumentos, e a voz da natureza. Uma escolha arrojada (quantos filme conhecem em que isto suceda?), mas uma aposta ganha. Sendo o sofrimento humano (particular e colectivo), a ausência da sussuração divina e ainda o hábito cultural japonês aquele da meditação em relação a tudo componentes narrativos fundamentais, a ausência de um banda sonora proporciona que estas componentes cheguem ao público sem distorção, sem interferência, sem manipulação. Comparar, por exemplo, com a abordagem sonora calculista (não tenho outro nome para a coisa) da principal sequência do Manchester by the Sea. A utilização de uma peça clássica que forte apelo emocional condiciona, e de que maneira, o força com que os acontecimentos atingem o público. A sobriedade visual de tal sequência fica manchada pelo uso da peça, na minha opinião. Em Silence o domínio desta componente é absoluto. Notável Scorsese, a mandar às urtigas aquilo que é um dado adquirido e banalizado na indústria cinematográfica americana (e em todo o mundo, na verdade).

- Absolutas são também a clarividência e sobriedade narrativas. Como o Paupau referiu, montagem "discreta" da estimável Thelma, desta vez a deixar que a clareza da mensagem narrativa permaneça acima dos planos de câmara arrojados, ou dos cuts sequenciais frenéticos e dos movimentos velozes que muitas vezes caracterizam a sua arte. Sobra, mesmo assim, espaço para algumas subtilezas deliciosas, e uma segunda visualização vai permitir certamente descobrir mais uma quantas. A certeza, a eficácia e o rigor absolutos com que todas as cenas foram planeadas, contextualizadas, construídas, sem hesitações nem segundos sentidos, permitem criar o desejável debate interior na mente do público. Sobre uma série de temas, e passando por uma série de dilemas.

- O Silêncio é o tema dominante, mas o sofrimento humano é o sentimento que tudo agrega, que tudo esmaga, que tudo reduz ao mesmo denominador comum: a lama e o lodo da submissão ao poder. 10 minutos volvidos e estamos enterrados bem fundo num poço de sofrimento humano, do qual, de resto, não haverá retorno ou afrouxamento até final da narrativa. Não são só as fartas e aterradoras sequências de tortura, é também a miséria humana que marcava a vida daquelas comunidades. É um filme muito intenso no sofrimento que mostra, e acutilante na serenidade como o mostra.

- Scorsese, uma classe à parte dentro da sua classe.

- Vontade agora para ler o livro. Em inglês, já agora, uma vez que elimino assim uma das duas fases de tradução. Pelo que li, a edição portuguesa foi traduzida a partir de uma tradução inglesa.
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by technicolor »

Este será talvez um dos "escritos" mais disparatados que já aqui publiquei, perdoem esta verborreia com pouco (ou nenhum nexo) mas ainda estou fortemente emocionado.

Tal com já "suspeitava" Silence é (mais ) uma obra prima de mestre Scorcese. É um filme difícil de digerir mas avassalador (para mim). Deixou-me completamente "mesmerizado", até por ser eu um apreciador confesso de cinema histórico bem feito e deste tema das missões jesuítas em especial. O rigor cénico é admirável, independentemente de ter sido rodado em Taiwan. Um design de produção e uma cinematografia soberbos, um argumento com uma qualidade indiscutível e excelentes actores (muito bem dirigidos é claro).
E digam agora os "bota abaixo" mau-) do cinema americano actual que só se faz porcaria!!! Claro que é uma produção feita maioritariamente com capitais independentes proporcionados por gente pouco preocupada com os resultados imediatos do box office mas que sabe que a médio longo/prazo terá retorno do seu investimento. Não sou católico (embora venha de uma família de forte convicções religiosas) e esse silêncio de Deus, muito acutilante, que o Samwise muito bem refere não me perturba, incomoda-me mais, talvez, a persistente fé que os missionários jesuítas teimam em manter apesar da indiferença do seu Deus ao sofrimento.
E tudo isso a camera do mestre consegue captar com vários nuances, nos rostos, na paisagem, no som... de Silêncio.

E só não lhe dou o 10 porque (pasme-se a ousadia) gostaria de que tivesse usado actores portugueses tal como usou japoneses eh-) , mas dou-lhe um generoso 9.5/10
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by Samwise »

technicolor wrote: E só não lhe dou o 10 porque (pasme-se a ousadia) gostaria de que tivesse usado actores portugueses tal como usou japoneses eh-) , mas dou-lhe um generoso 9.5/10
Estou a antever que a abordagem do José Miguel, gostando ou não do filme, irá ainda para além disso: actores e diálogos em português arcaico da época, nalgumas situações arranhado e quase cuspido. :mrgreen:

Fora a questão evidente da estranheza/impacto inicial de ver todos os envolvidos (padres, aldeões, soldados, inquisidores...) a falarem inglês e a entenderem-se sempre às mil maravilhas (que entendo ser um mecanismo narrativo artificial, mas que visa facilitar a leitura do filme e proporcionar fluidez narrativa - não creio que se ganhasse nada em perder tempo em torno das dificuldades de comunicação tal como se entende que deviam haver, e de modo extremo, em todas e a cada abordagem naquelas situações), achei os diálogos muito bem elaborados, contextualizados e naturais.

----

Para tiver interesse pelo assunto e paciência para dedicar uns minutos, estão aqui duas contextualizações muito interessantes:

http://observador.pt/videos/conversas-2 ... dao-da-fe/

http://www.tsf.pt/sociedade/interior/no ... 31892.html (este segundo link não tem depois o ficheiro de som disponível, mas esperemos que a TSF corrija a situação rapidamente).
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by technicolor »

Caro Samwise

O debate do Observador é muito interessante. Clarifica um pouco o contexto histórico local/temporal que no filme é um tanto vago e para pessoas menos conhecedoras, como eu, ajuda a compreender com mais detalhe o "conflito" espiritual (?!) patente nesta obra de Scorsese. o da TSF infelizmente já não está disponível. O livro, esse ainda não o li, talvez no próximo verão...

No que diz respeito à utilização das línguas "originais" em filmes, Mel Gibson fez essa opção em The Passion of the Christ e Apocalypto e em minha modesta opinião não resultou nada mal. Para mim ver missionários portugueses do século XVII (---e que coincidência; o século da Inquisição na Europa :mrgreen: ) a falar inglês entre eles e a arremedar algumas palavras num pseudo português é que ... bom... pois... como?-)

Um esclarecimento adicional :-) A minha referência aos "detractores" do cinema americano actual não se dirige a o José Miguel mas sim a um membro do forum que de vez em quando aparece larga umas "bombocas" e recusa um debate mais aprofundado. O José Miguel defende com garra as sua opiniões e isso eu respeito, admiro e tenho aprendido muito com ele sobre cinema (de leste e não só... :wink: )
Sobre o filme... gostei bastante daquele final em que paira uma certa ambiguidade sobre a real apostasia (?!) dos dois jesuítas sobreviventes. Será que eles renunciaram ao cristianismo e abraçaram o budismo ou... digamos que "ampliaram" a sua espiritualidade de origem com uma abertura à filosofia budista... Os jesuítas não eram missionários vulgares, eram uma elite dentro da igreja com uma significativa cultura que ultrapassava em muito a mera formação teológica... (Isso também está bem patente em filmes com The Mission ou Black Robe)
Samwise
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by Samwise »

Technicolor, entretanto o podcast da TSF já se encontra corrigido e disponível (foi ao contrário, não se tratou de "já ter saído do ar", tratou-se de não ter chegado a ser colocado online... ). Vale a pena ouvir, é muito, muito interessante. Dá muito mais pistas e respostas sobre o "Silêncio".

Em relação ao José Miguel, partilho da tua opinião, e como já conheço os "gostos" dele, brinquei um pouco com a ideia de "realismo absoluto na abordagem", sabendo por outro lado que se fosse essa a intenção do Scorsese, duas horas de filme passariam apenas à volta de uma qualquer tentativa de comunicação (entre um ocidental e um local), e das voltas e reviravoltas que dariam para se fazerem perceber um ao outro com um mínimo de fidelidade à mensagem.

Quanto ao final, para mim não deixou grandes dúvidas:
Nenhum dos padres renunciou verdadeiramente, apesar de o terem feito parecer em tudo o que era a sua vida pública, pelas razões que se conhece. O Garfield porque ouviu a voz de Deus naquele momento crucial, e porque sabemos mesmo no final que a sua mulher o conhecia a ponto de perceber que ele se mantinha fiel ao cristianismo, e o Neeson porque tem aquela frase saída do nada em que parece ter-lhe saído por engano: "Christ, Our Lord", sendo depois questionado pelo Garfield se de facto o tinha dito, e retorquindo laconicamente, de forma ironica: "Did I? I didn't notice it!"
Last edited by Samwise on February 2nd, 2017, 9:16 pm, edited 1 time in total.
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Ludovico
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by Ludovico »

Vi o filme ontem à tarde no Norteshopping,antes de o ver,ia com as expetativas ELEVADISSIMAS. Basta lêr os comentários de outros colegas de fórum para ir com expectativas ENORMES.Devo dizer também que fui porque os últimos filmes de Scorsese foram dos melhores filmes que eu vi nesta década até ao momento.
Bem, foi uma DESILUSÃO ENORME. Aconteceu-me o que me acontece desde há muito: Quanto maior é o meu nível de expetativa PIORES são os resultados finais.
Estive a lêr muito atentamente as opiniões e descubro que DECIDIDAMENTE NÃO VIMOS O MESMO FILME.
Sinto-me maravilhado com isso mesmo!!! yes-) .
Teria muito que contar,não sei se o farei em breve,mas 2017 começa mal e eu não esperava isso :-( .
Tenho a opinião de um dos críticos do site C7nema.net,isto é, se isto é um processo de sonho de Scorsese,deixa muito, mesmo muito a desejar.ADORO filmes históricos e da obra de Scorsese mas depois de 3 MILAGRES NARRATIVOS, de 3 QUIMERAS cinematográficas em 3 géneros diferentes,Scorsese FALHA novamente não da maneira abissal como em "The Departed" mas ainda assim de uma forma clara :-(
nota:7/10
"Sempre as horas,as horas,as horas......"
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Re: Silence (2016) - Martin Scorsese

Post by Samwise »

Já agora, para complementar uma opinião menos boa com outra, uma opinião de 7 com outra que fala em 7:

Padre Gonçalo Portocarrero de Almada, no Observador
Um ‘Silêncio’ ensurdecedor

Os sete pecados capitais do romance de Shusaku Endo e do filme de Martin Scorcese, segundo a doutrina e a moral católicas, pecados que decorrem de contradições com princípios básicos da fé cristã.

O filme ‘Silêncio’ tem certamente muitas qualidades cinematográficas, mas também tem, pelo menos, sete pecados capitais. Não os clássicos, mas os que decorrem das contradições entre o seu argumento e alguns princípios básicos da fé cristã e da moral católica.

O argumento do filme, inspirado no homónimo romance de Shusaku Endo, poder-se-ia resumir numa frase: por caridade, seria justificável a apostasia, ou seja, a rejeição da fé. Nalguns casos, o martírio, que é a vitória da fé, deveria ceder ante o imperativo da caridade: não seria virtuosa a morte que arrastasse consigo a vida de seres inocentes. Num contexto de uma eventual perseguição, poderia ser até meritória a apostasia, como expressão de um amor desinteressado, porque o mártir poderia ser, em última análise, um orgulhoso que, para garantir a sua própria glória, permitiria a tortura e morte de fiéis inocentes. Pelo contrário, o cristão autêntico seria o que, por amor aos outros – não é a caridade a principal virtude cristã?! – se disporia até a renegar a sua fé, mesmo sabendo que, desse modo, pecaria gravemente e, portanto, comprometeria a sua salvação.

Este é, grosso modo, o argumento de ‘Silêncio’, o romance de Shasaku Endo que Martin Scorcese realizou como filme. Mas, esta tese é aceitável segundo os ensinamentos da fé cristã e da moral católica? Não parece, à conta dos sete pecados capitais deste ensurdecedor ‘Silêncio’ …

1. O primeiro pecado capital de ‘Silêncio’ é, precisamente, a contradição que estabelece entre a fé e a caridade cristã, insinuando que, nalgum caso, pudesse ser necessário negar a fé para salvaguardar a caridade, ou seja, apostatar por amor. Uma tal suposição contraria a noção de martírio cristão, que não é, como se pretende fazer crer, um acto de orgulhosa afirmação pessoal, mas um acto supremo de caridade cristã: “ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13). São Paulo ensina que a morte mais cruel, sofrida pela fé, mas sem amor, não só não é martírio como não teria, em termos cristãos, nenhum valor: “ainda que eu (…) entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita” (1Cor 13, 3). O mártir não antepõe a sua salvação e glória eterna ao bem dos outros mas, imitando Cristo, oferece a sua vida pelos seus irmãos e pelo bem das suas almas. Mesmo sendo, em termos humanos, inglória a morte do mártir, a Igreja sempre considerou que o martírio nunca é um acto egoísta, nem em vão, porque o sangue dos mártires é sementeira de novos cristãos.

Note-se que, antes de Cristo, o povo judeu já tinha esta convicção: a mãe dos sete irmãos macabeus exorta-os a permanecerem fiéis até à morte, pois seria desonrosa a sua apostasia, não só para eles, mas também para a sua família e para todo o povo de Deus. Quando as autoridades pedem à piedosa mãe que, pelo menos, evite a morte do último filho que lhe resta, aquela santa mãe que, “cheia de nobres sentimentos, juntava uma coragem varonil à ternura de mulher” (2Mac 7, 21), anima-o a permanecer fiel até à morte: “Não temas, portanto, este carrasco, mas sê digno dos teus irmãos e aceita a morte, para que, no dia da misericórdia, eu te encontre no meio deles” (2Mac 7, 29). A sua cedência seria sempre, mesmo naquele contexto tão doloroso, uma ignominiosa traição e, ao invés, a sua fidelidade até à morte, a melhor expressão da sua caridade, também para com os seus irmãos e a sua mãe, que por isso o anima a abraçar o martírio.

2. O segundo pecado capital de ‘Silêncio’ é a suposição de que um acto, em si mesmo mau, poderia não sê-lo num determinado contexto. Ou seja, mentir ou apostatar seriam justificáveis em legítima defesa, ante uma agressão injusta e brutal. É nesta contradição que radica o relativismo do argumento porque, segundo a moral cristã, uma acção intrinsecamente má não pode deixar de o ser, mesmo se for um meio para alcançar um bem maior. Não se pode matar um ser humano inocente, nem apostatar, mesmo que seja para salvar outras vidas.

3. O terceiro pecado capital radica na suposta independência entre os actos de um sujeito e a sua fé, ou seja, um crente poderia externamente apostatar, sem contudo negar a fé no seu interior. Mas não se pode restringir a afirmação da fé a uma mera atitude interior, porque é pelas obras que se conhece a verdadeira fé.

A cena final deste filme sugere, com efeito, que a apostasia poderia, na realidade, não ter afectado a verdadeira fé do apóstata, porque este, embora exteriormente tivesse publicamente repudiado a sua condição cristã, no seu íntimo continuaria a ser católico, mesmo vivendo em aberta contradição com a sua fé. Mas, seria cristã uma tal contradição entre as obras exteriores e as convicções íntimas?!

É óbvio que essa duplicidade, se consciente e voluntária, não é compatível com a fé cristã que, mais do que acreditar numas determinadas verdades, exige uma vivência de acordo com esses princípios, que o são precisamente porque têm correspondência com a prática. Portanto, não é católico quem diz que o é, mas quem procura viver como tal. Em caso de contradição entre a fé e as obras, é pelas obras que se há-de conhecer a fé e não o contrário: “de que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? (…). Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda: poderá alguém alegar sensatamente: Tu tens a fé, e eu tenho as obras, mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé. Tu crês que há um só Deus? Fazes bem. Também o crêem os demónios, mas enchem-se de terror. (…) Assim como o corpo sem alma está morto, assim também a fé sem obras está morta” (Tg 2, 14. 18-19. 26).

4. O quarto pecado capital tem que ver com o silêncio propriamente dito, que serve de título ao romance e ao filme correspondente. Na realidade, é quase blasfema a afirmação de que Deus se mantém silencioso quando os padres Ferreira e Rodrigues se enfrentam com um doloroso dilema, porque eles sabem muito bem qual a resposta de Deus a essa sua dúvida. Com efeito, Deus fala pela Sagrada Escritura, Deus fala pela sagrada tradição, Deus fala pelo magistério da sua Igreja, Deus fala pela oração, Deus fala pela obediência do religioso ao seu superior, Deus fala ainda pela voz da recta consciência. Mais do que silêncio de Deus, haveria que falar da surdez dos homens que não querem ouvir a sua voz, ou da sua fraqueza para cumprirem os seus mandatos.

Imputar, a um hipotético silêncio divino, a culpa pela apostasia do missionário é tão absurdo como seria despropositado que um assassino se desculpasse do crime que realizou, dizendo que não ouviu nenhuma voz do alto proibindo-o de matar …

5. O quinto pecado capital de ‘Silêncio’ é a sua tentativa de apresentar a religião católica como um produto ocidental que se opõe à tradição e cultura nipónica, como se os missionários, com o pretexto de evangelizar, no fundo fossem colonizadores, ou agentes de um certo imperialismo cultural. Neste sentido, a reacção das autoridades japonesas seria, em primeiro lugar, patriótica e, neste sentido, pelo menos compreensível, se não mesmo louvável.

Ora o Cristianismo não pertence, em regime de exclusividade, a nenhuma cultura ou tradição mas, como verdade que é, faz parte do património universal da humanidade. Seria absurdo considerar que a evangelização da Europa foi, na realidade, uma acção colonialista oriental, só porque os cultos pagãos europeus foram substituídos pela crença judaico-cristã, de origem asiática. Toda a verdade, nomeadamente a fé cristã, não é de nenhum povo em particular mas, como a ciência, é património de toda a humanidade: é por isso que a Igreja é católica, ou seja, universal.

Em cada país, a fé cristã adapta-se perfeitamente aos usos e costumes locais, desde que sejam moralmente lícitos. Diga-se de passagem que nesse processo, nem sempre fácil, de inculturação da fé, os jesuítas realizaram um trabalho admirável, nomeadamente no Extremo Oriente.

6. O sexto pecado capital de ‘Silêncio’ é o que decorre da metodologia adoptada para o tratamento cinematográfico, mesmo que ficcionado, de uma determinada realidade histórica. Com efeito, a dificílima evangelização do Japão é uma das páginas mais heroicas da história da Igreja Católica e da Companhia de Jesus: ao referi-la pela perspectiva da apostasia de uns poucos, ofende-se a memória dos muitos que foram verdadeiros heróis. A apostasia de alguns foi a excepção à regra do martírio de tantos: recordem-se, por exemplo, São Paulo Miki e os seus companheiros mártires.

É verdade que o Padre Cristóvão Ferreira apostatou e não foi o único, mas contar a evangelização do Japão por esse prisma é tão incongruente como seria injusto expor a acção heroica dos 40 conjurados que restauraram a independência nacional, em 1640, pelo prisma do traidor Miguel de Vasconcelos …

7. O sétimo pecado capital de ‘Silêncio’ é confundir apostasia com apóstatas, transferindo o perdão e compreensão de que os apóstatas, como quaisquer outros pecadores, carecem, para a própria apostasia, que é deste jeito moralmente justificada. Ora a Igreja sempre ensinou a amar os pecadores e a detestar o pecado, de modo semelhante a como o médico luta contra a doença, mas acolhe e protege os doentes. A tolerância é para o pecador, não para o pecado e, mesmo aquele, só pode ser perdoado e acolhido de novo se verdadeiramente arrependido.

A Igreja sempre venerou os mártires, mas nunca os confundiu com os apóstatas, que também nunca excluiu, muito embora requeresse, para o seu perdão e readmissão na comunhão eclesial, o seu arrependimento e penitência, que devia ser pública quando a apostasia também o era. Assim aconteceu com os primeiros cristãos que fraquejaram ante as perseguições romanas, os lapsi, sobre os quais S. Cipriano de Cartago escreveu um tratado.

Ao contrário dos muçulmanos, que ainda hoje aplicam a pena capital aos renegados, a Igreja Católica, sem nunca legitimar a apostasia, sempre perdoou e acolheu de novo os apóstatas arrependidos. Simão Pedro negou por três vezes o Mestre, chorou amargamente o seu pecado, de que o Senhor o perdoou e depois foi mártir e o primeiro papa da Igreja Católica! Porque Deus é amor, perdoa sempre o pecador arrependido, não uma vez, nem três ou sete, mas, como em ‘Silêncio’ se mostra de forma tão comovente, setenta vezes sete! (cf. Mt 18, 22).
«The most interesting characters are the ones who lie to themselves.» - Paul Schrader, acerca de Travis Bickle.

«One is starved for Technicolor up there.» - Conductor 71 in A Matter of Life and Death

Câmara Subjectiva
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