Tenho tido uma sorte enorme nas escolhas que tenho feito para assistir em sala. Este ano, até agora, foram o
Silence, e este
Toni Erdmann.
Nota 10 aos dois.
Não podia ter saído da sala mais preenchido do que saí no final do Toni. Este vai-me permanecer na memória durante um bom tempo.
Filme deveras insólito e imprevisível no modo de abordagem as temáticas sobre as quais se debruça, e com três ou quatro sequências que roubam completamente o protagonismo a outros "momentos altos"que tenham surgido no cinema contemporâneo - talvez de forma também desequilibradora dentro do próprio filme, mas metáforas fortíssimas que a princípio são confusas mas que se revelam claras depois face ao contexto geral (a canção que a filha é "obrigada" a interpretar é uma escolha "atenta" por parte do pai, e a sequência em que se despe e se mostra ao círculo de proximidades não é apenas em sentido literal...***)
Tem dois actores que são escolhas fisionómicamente perfeitas para os respectivos papeís e que arrancam interpretações de alto calibre. Quais Casey Afflecks, quais quê!!!
É uma fábula moderna, um "Peter Pan" virado para a alta roda da vida empresarial contremporância, feito para adultos, filmado de forma adulta, com uma vertente humorística muito forte e desconcertante (porque encerra um lado de amargura e desencanto que é também bastante comovente), e que se centra, em particular, nos afectos familiares e no efeito destrutivo que os papéis e as máscaras sociais podem exercer sobre eles. Uma pergunta colocada bastante cedo no filme resume a ideia: "O que nos torna verdadeiramente felizes?" Mais do que a procura do sentido da vida, é a procura da felicidade que está em causa.
Em termos narrativos, estas questões materializam-se no relacionamento entre um pai à beira de entrar para a terceira idade e a filha com quem tenta uma reaproximação, e que está "institucionalizada" e embrutecida pelo modo de vida das sociedades capitalistas modernas. A transfiguração deste pai numa espécie de "Mr. Hyde" benevolente em busca da cumplicidade perdida, que se expõe de modo deliberado a um ridículo condenado socialmente, e a sua recusa em olhar para um mundo em que a perda de valores emocionais parece ser um requisito para o sucesso e para o reconhecimento social, domina em grande parte o sentido aparentemente aleatório da narrativa. Há uma morte no final que serve para introduzir uma outra ideia dominante - à medida que envelhecemos, o que é que nos resta do passado face à perspectiva cada vez mais próxima de um fim? O que nos resta (e nos importa preservar) dos tempos felizes em que inocentemente o ignorávamos? Evocação dos momentos de infância que conservamos presentes (ou não) no nosso modelo de vida...
Estou completamente identificado com a crítica social que este filme aborda, com os valores que defende, e muito em específico com o
pathos das duas personagens centrais. O realizador é uma mulher, e talvez por aí tenha também havido uma abordagem particularmente cuidada ao papel da filha - a actriz que a interpretou teve bastante coragem para o fazer. Tem-se discutido por aí bastante o papel da Isabelle Huppert no
Elle e a justeza de um eventual Oscar, mas a Sandra Hüller não lhe fica nada atrás e nem nomeada foi.
De muitos em muitos anos surge um OVNI assim no cinema. Não percam...
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