Relações Perigosas
Com “Carol”, o realizador Todd Haynes regressa aos caminhos do melodrama e da homenagem aos clássicos do género.
Uma paixão proibida num tempo de opressão social: este poderia ser uma espécie de slogan para Carol, que se foca na relação “clandestina” entre uma mulher casada e deprimida e uma jovem aprendiz de fotógrafa desejada pelos seus pares. Duas mulheres, com duas vidas distintas, uma à beira da destruição, e a outra a iniciar o seu percurso. Encontram-se, amam-se, mas será tudo isto permitido pelos homens que as rodeiam? E como em todos os romances, sejam eles literários ou cinematográficos, há um interesse fundamental nesta paixão que quer emocionar o espectador. É aí que entra a força do contexto retratado, e da maneira como as duas mulheres lidam com os problemas impostos pelo senso comum da época, e pelos tabus que dominavam uma sociedade americana fechada para os “outros”, restrita a uma norma de vida, hipócrita na sua “felicidade” e “eficácia”.
Esta é uma história de amor impossível. Ou pelo menos, impossível numa determinada era com as suas características muito próprias. E acrescentamos ainda: Carol seria um projeto demasiado arriscado para ser feito na época em que a narrativa se situa. Cate Blanchett e Rooney Mara dão força e corpo ao par de protagonistas deste filme de desejos proibidos, de amores interrompidos, de ilusões e desilusões numa América aparentemente perfeita. Estamos ainda no tempo da caça às bruxas imposta pelo senador McCarthy, a moral e os bons costumes imperam com o auxílio de um fanatismo desmesurado, e de uma irracionalidade causada por um alto conservadorismo das elites sociais e do mundo cultural.
Depois do célebre Longe do Paraíso, e, na televisão, da adaptação de Mildred Pierce, Todd Haynes volta às suas influências primordiais – e ao cinema de Douglas Sirk em particular. Se já no outro filme (que tinha Julianne Moore como protagonista), o realizador pegava em temáticas delicadas para o cinema clássico americano (como as tensões raciais e o divórcio), neste novo filme, Todd Haynes eleva a fasquia com uma história que, mesmo que visualmente nos recorde o cinema de Sirk, não se identifica com ele no romance que o espectador pode aqui acompanhar. No entanto, Haynes volta a utilizar uma perspetiva clássica (em termos formais) para falar de um tema que, na modernidade, se tornou felizmente “vulgar”. Para isso, viaja até uma época em que era comum considerar a homossexualidade como um pecado, uma “dádiva” do demónio, uma afronta à sociedade. Um olhar do presente para um passado não tão longínquo, um filme que se quer passar como uma reflexão moderna aos problemas da vida em comunidade, mas que acaba por tocar todo o tipo de relações humanas.
Partindo de um romance autobiográfico da escritora Patricia Highsmith, Haynes tenta construir um retrato da opressão da moral e dos bons costumes do american way of life da década de 50. Mas disso fica apenas um esboço, uma estrutura frágil que não consegue convencer. E é por isso que, apesar de ser um filme em que os meios técnicos são quase completamente irrepreensíveis, Haynes não tem capacidade para ir mais além do que uma primeira camada, superficial e simplista, de uma conjuntura que tem muito que se lhe diga. Numa obra narrativa, não é só a imagem que faz falta. O resto também. O filme fica no ecrã e dele não sai, não nos acompanha, nem aquelas personagens nos tocam com a intensidade que o cineasta idealizou.
O que nos vale é Blanchett e Mara, que aguentam a fragilidade do guião com duas belíssimas interpretações, com olhares e silêncios que nos agarram e emocionam enquanto a história vai andando ao pé coxinho (e é delas que acabamos por trazer alguma coisa para casa), no meio de tanto aparato dos fifties, tanto cigarro e tanto detalhe aos pormenores da época histórica retratada. Aparato esse que por vezes, tem um papel demasiado relevante, como naqueles filmes e séries britânicas “de época” em voga nos dias que correm. Mas servem apenas para compor a paisagem tão bonitinha e perfeitinha que Haynes nos apresenta, auxiliada pela fotografia e por uma câmara mais ou menos cuidada, que quer disfarçar os problemas que poderiam ter sido facilmente corrigidos. O que fica, para além do que o elenco nos deixa para contemplar, é essa atenção às emoções que a maioria do cinema americano moderno parece gostar de desprezar. Só por isto já Carol vale a pena.
3/5