O título, por si só, já dá uma pista acerca de um dos temas que o filme aborda. Mas já lá iremos. Apetece-me ir antes ao título do primeiro filme realizado por Kubrick - mais tarde por ele renegado: "Fear and Desire - Medo e Desejo" (1953). Essa ideia surge reflectida no filme de 1999: o medo e o desejo a andarem lado a lado, de mãos dadas; o facto do terreno de areias movediças que nos amedronta ser também aquilo que mais nos fascina, nos seduz - a tal lógica do fruto proibido poder ser o mais apetecido.
É certo e sabido que o filme aborda as questões da fidelidade, da traição, da tentação, da ilusão da confiança no outro e na confrontação com os fantasmas que circulam no espaço conjugal e dos quais não se tem/tinha noção - por ingenuidade, crença absoluta na segurança da relação matrimonial, por verdadeira alienação emocional, etc, etc, etc. Mas é também uma crítica acérrima à passividade – neste caso, eminentemente masculina -, aos labirintos da conivência e da cumplicidade mais abjecta. Daí a importância irónica do título, como que a querer sugerir: “olha ao teu redor, vê, apercebe-te mas não te esqueças: mantém-te de olhos bem fechados!”
As duas festas são diferentes em termos superficiais, mas semelhantes na sua essências: ambas são verdadeiros “bailes de máscaras”, de maquinações relacionais e emparelhamento; na primeira, percebe-se de imediato que aquilo é palco para uma subtil sedução predatória, promessa de sexo e promiscuidade, consumo de drogas pesadas e álcool, etc, só que essas coordenadas são ali moralmente aceites e toleráveis porque se encontram revestidas de um embrulho aparentemente elegante e sofisticado, da nata da sociedade (a Alice chega a perguntar: “Porque é que nos convidam para estas festas todos os anos?”); na segunda festa, tudo é desfiado até à sua mais básica essência, onde já não se está para grandes rodeios nem qualquer tipo de convenção – é a mais rotineira mercantilização dos corpos e do desejo, irracional, animalesca, primitiva, onde as máscaras são agora usadas, literalmente, na cara.
A personagem de Tom Cruise, Bill, é alguém que parte para a sua jornada numa tentativa de ser tão transgressor quanto a mulher o foi com a sua confissão de quase adultério mas que cedo percebe que tudo à sua volta é “areia a mais para o seu camião”, sujo, moralmente corrompido e degradante. São territórios novos que o transcendem por completo, ele que tem vivido numa “bolha higienizada” a todos os níveis. É casado com uma Alice, é certo, mas é ele que cai na toca do coelho rumo ao "país das maravilhas".
Se formos a ver bem, a conivência e cumplicidade desconcertantes (dele para com os outros e entre as várias personagens), aliadas à passividade, estão presentes em quase todos os contactos sociais que presenciamos ao longo do filme:
- Na festa inicial, Bill socorre a jovem modelo à beira da overdose, mas não a leva ao hospital, não requisita nenhuma ambulância, nem sequer chama posteriormente o dono da casa à razão para saber mais, se aquilo acontece com regularidade, para que episódios daqueles não se repitam;
- A Alice, após o seu desabafo fortíssimo, conta com o silêncio dele e a ausência de perguntas – e, provavelmente, que ele assimile aquilo tudo, passe à frente e nunca mais traga essa conversa à tona;
- Ao auxiliar a mulher que acabou de perder o pai, fica a saber do amor dela por ele e não tenta resolver aquilo de maneira mais eficaz, nem sequer indo abrir o jogo com o noivo dela (mais tarde, liga lá para casa, o noivo atende e Bill desliga de imediato assim que percebe que foi ele que atendeu a chamada);
- Relativamente à prostituta, fica a saber pela amiga que ela testou positivo para HIV e raspa-se de fininho, dando o “assunto” por enterrado;
- Quanto à filha do vendedor de fatos de disfarce, nunca faz por denunciar a evidente exploração e abuso infantil que lá decorre (a única coisa mais significativa que diz é, no dia a seguir, ao pai da rapariga: “Você ontem tinha ficado de chamar a polícia!”, ao que o pai responde qualquer coisa como “Conseguimos chegar a um entendimento; você também pode beneficiar desse entendimento, se é que me entende…”);
- No caso do Recepcionista de hotel, não o chama à razão por este não ter tomado uma atitude mais proactiva ao se ter apercebido que algo de estranho se passava com o pianista amigo de Bill – que trazia, inclusive, a cara magoada quando chegou ao hotel pela noite dentro;
- Sobre a festa da parte final, nunca denuncia nada nem ninguém, guarda para si mesmo – mesmo tendo noção que a Mandy/Amanda Curran morreu na sequência do que por lá se passou depois de lhe ter safo a pele, de se ter oferecido como sacrifício – quer acreditemos que isto tenha sido real ou encenado, ele nunca tenta deslindar nada;
- Na confissão final de Ziegler, em que as coisas são mais ou menos clarificadas a traço grosso, mais uma vez engole, assimila e segue para bingo;
- Na cena final, na loja, o casal consegue comunicar saudavelmente e assume, por fim, que o que têm a fazer é lidar com o que vivenciaram – quer tenha sido real (caso dele) ou sonhado (caso dela) - , integrar isso e seguir em frente. A solução? Bem, digamos que a solução passa por uma outra plataforma de entendimento, mais carnal, à flor da pele, urgente, quanto mais não seja para evitar outros possíveis “desvios” no futuro que podem dar bronca, muita bronca.
Tendo em conta os mais recentes episódios trazidos a lume pelos movimentos “Time’s Up” e “Me Too”, estes pontos temáticos ganham especial relevância – perante isto, chego a pensar ainda mais naquilo que se sempre se ouviu ou leu sobre o filme, relativamente às dificuldades que Kubrick terá enfrentado nos bastidores aquando da produção de tão fascinante objecto cinematográfico…