Cinema de Leste

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nimzabo
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Re: Cinema de Leste

Post by nimzabo »

nimzabo
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Re: Cinema de Leste

Post by nimzabo »

Hoje dei com este filme que não vi nem tenho:
Only Old Men Are Going to Battle
https://www.imdb.com/title/tt0070861/?ref_=rvi_tt
Zlogorek
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Re: Cinema Soviético

Post by Zlogorek »

Hi JoséMiguel!
JoséMiguel wrote: April 21st, 2013, 2:39 am já à alguns anos que ando à caça do filme soviético de onde foram retiradas as imagens deste clp musical:



Adorava saber ao menos o título do filme. Eu tenho divulgado bastante cinema soviético, mas apenas piquei a ponta do icebergue. Não consigo mesmo descobrir que filme é este.
If you're still interested, this is war dramedy

Женя, Женечка и "Катюша" / Zhenya, Zhenechka i "'Katyusha" (1967)

Image

USSR, Lenfilm Studio, 85 min.
Director: Владимир Мотыль / Vladimir Motyl
IMDb: https://www.imdb.com/title/tt0062523/
Wikipedia(EN): https://en.wikipedia.org/wiki/Zhenya,_Z ... d_Katyusha
Wikipedia(RU): https://ru.wikipedia.org/wiki/Женя,_Женечка_и_«катюша»
KinoPoisk(Russian movie database): https://www.kinopoisk.ru/film/45311/
Kino-Teatr(Russian website about cinematography and theatre): https://www.kino-teatr.ru/kino/movie/sov/2215/annot/
Youtube(unfortunately without subtitles): https://www.youtube.com/watch?v=Dn3HudqFecI
Enlish subtitles: https://www.opensubtitles.org/en/subtit ... atyusha-en
Film was released on DVD in 2003(?) by CP Digital with Russian, English and German subtitles (Amazon).

I hope it was useful.
technicolor
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Re: Cinema de Leste

Post by technicolor »

8).
Marketa Lazarová (1967) František Vláčil
The investment of imagination by the director and actors of Marketa Lazarová is astounding.
Their creation of idiomatic personae is as close as we’re going to get to time travel.
Tim Buck



Escrever sobre este estranho e fascinante filme é um exercício um pouco "arriscado" dado o facto de o mesmo ser bem conhecido pela sua estrutura narrativa algo aleatória (?) e de difícil compreensão. É no entanto um filme belíssimo (sublime mesmo) e parte do seu encanto advirá de, apesar da sua ambiguidade (composta por acções aparentemente desconexas que acabam por se ligar algures durante a narrativa) ter sido o primeiro a nos mostrar uma Idade Média despida de fantasia e lendas moralistas.
Sendo considerado por alguns como uma importante obra da cinematografia mundial (no género histórico) plena de energia criativa, elaborada reflexão sobre a raça humana e com profundidade emocional, é afinal uma visão peculiar e dura do início de uma época de obscurantismo da civilização durante a qual competem pelo domínio espiritual das gentes o paganismo de um lado e o cristianismo do outro, abordando também ainda a ténue diferença entre princípios masculinos e femininos, diferença essa que por vezes nesses tempos se confundiria mesmo entre amor e ódio.

Uma vaga sinopse:

Século XIII , Mladá Boleslav, região da Boêmia* na Europa de Leste, dois clãns de pequenos senhores feudais que lutam pela sobrevivência, um ateu e outro convertido ao cristianismo dedicam-se a atacar e roubar os viajantes que por ali passam, como forma de complementarem a sua escassez recursos (provenientes quase exclusivamente do trabalho da terra e de algum pouco comércio). Um, o clã Kozilik, uma familia pagã e outro, o clã Lazar família essa cristã. O senhor Kozilik lança os seus 17 filhos à pilhagem de cavalos e bens... Lazar o outro senhor, faz o mesmo mas com menos violência (é mercador). Kozilik tem o azar de um dia de inverno assaltar uma caravana de nobres alemães e a rotina da região vai sofrer uma escalada dramática...
O filme acompanha a interacção de três grupos díspares, cada um representando um modo diferente de selvajaria. Os mais primitivos são os Kozlíks (pagãos) uma horda de filhos e filhas sob o controle de um pai tirânico, que vive de ataques a viajantes. Neles se inclui o filho mais velho, Mikoláš, descrito como um lobo humano, e seu irmão Adam, com apenas um braço pois o outro o pai cortou-lho para o salvar por nele ter sido mordido por uma cobra durante uma relação incestuosa com a sua irmã Alexandra. Os irmãos Kozlík atacam uma caravana de nobres alemães que por ali passa e sequestram um jovem conde (?) de entre eles, cujo pai o bispo de Hennava consegue escapar indo exigir vingança ao rei o qual envia um regimento chefiado por um capitão, Pivo, um antigo fabricante de cerveja local, para encontrar e salvar o jovem refém e punir os Kozlíks. Um outro clã um pouco mais "civilizado" tem como líder o comerciante Lazar e inclui (entre vários outros membros) a filha mais nova, Marketa (Lazarova ...de Lazar?) , a qual ele prometeu a um convento próximo. Lazar vacila entre tomar partido pelos bandidos ou ajudar os alemães, limitando-se afinal a recolher o espólio dos cadáveres deixados pelos Kozlíks, não se juntando aos saqueadores para não ser alvo do castigo das tropas do rei e nega ajuda a Mikoláš Kozlíks quando posteriormente este visita o seu reduto, propondo uma aliança dos dois clãs para enfrentarem as tropas do rei (que constituem a terceira forma de violência). À medida que o regimento se aproxima, os Kozlíks abandonam a sua fortaleza de difícil defesa por o frio do inverno ter feito gelar a água do fosso, e escondem-se num reduto primitivo na floresta. Seguidamente atacam o clã de Lazar em vingança pelo tratamento dado a Mikoláš, sequestrando e violando a jovem Marketa a qual apesar da brutalidade a que é sujeita acaba por se apaixonar por Mikoláš o seu carrasco.
....
Passado o período dos combates em que Mikoláš o seu amor e quase toda a restante família são mortos, Marketa que sobrevive tentará regressar ao convento, mas durante o acto de contrição que lhe imposto pelas freiras (com um aspecto algo sinistro a fazerem recordar as freiras do The Devils do Ken Russel evil-) ) para ser readmitida na congregação arrepende-se e parte sem destino aparente...
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Uma pequena dissertação sobre o simbolismo animal e as relações de poder patentes na obra.

Kozlík o velho pagão está obviamente associado ao seu chapéu de pele de cabra (para lhe cobrir o crânio rachado numa peleja) o qual lhe confere um aspecto algo grotesco e que não sendo de todo um herói tem boas características pois ao contrário de Lazar o qual é temeroso e cínico, ele sabe que comete crimes e está preparado para pagar por eles, mas também cuida de sua família e de seus filhos, que são sua principal motivação.
Por seu lado Marketa a jovem filha de Lazar o mercador/ladrão é introduzida na história com uma pomba nas mãos (a antítese da bela e selvagem Alexandra filha de Kozlík que está está ligada às cobras e a feitiçaria) e é, apesar de dar título ao filme, uma personagem surpreendentemente secundária, uma virgem que com a sua inocência e beleza simples serve de contraponto a toda a selvajaria e fealdade envolvente, e pese o seu pouco protagonismo não é de todo de ignorar; é uma figura com uma enorme carga de simbólica, não só carnal mas também espiritual, acentuada no epílogo em que a vemos afastar-se do frade ermita (que a tenta aliciar a juntar-se-lhe na sua existência errante) partindo sozinha por um caminho rural rodeado de estranhos totens... no entanto a voz do narrador dá-nos a conhecer um pouco do que terá sido a sua existência posterior (após a tentativa gorada de regressar ao convento ao qual estava inicialmente estava destinada pelo pai...)

O filme é um caos que desafia a linearidade e a perspectiva e talvez até possa ser melhor descrito como um arranjo de partes conectadas que se assemelharia a uma unidade, enfim um filme formalmente único. Se a montagem parece acidental e com pouca estabilidade, as linhas do tempo são desordenadamente organizadas. Digamos que será uma visão da vida antes da racionalização, antes da estabilização de uma posição privilegiada do sujeito e antes da institucionalização de uma moderna divisão humano-animal judaico-cristã .
Na Idade Média, quando humanos e animais viviam próximos um do outro, o tornar-se animal era uma ameaça e possibilidade e será essa é uma das razões pelas quais histórias de transformação animal proliferaram. Marketa Lazarová é uma mito-história do devir-animal que desafia a divisão entre seres humanos e bestas. A forma incomum do filme resulta num enredo desconcertante, por mais básico que seja e contudo não o é.
Logo nos planos iniciais apresenta dois destacados membros do clã Kozlík a roubar uma caravana sem imaginar que será este o começo do fim do seu clã /família.

É importante ressaltar que as imagens de animais nunca são reduzidas a meras metáforas, como é comum em muito do cinema ocidental. Eles aparecem aqui de maneira diferente dependendo de quais outras figuras humanas apareçam com eles. O clã Kozlík de tendência semi-nómada vivendo junto com os seus animais versus o exército do rei como uma máquina de guerra dirigida pelo estado e usada para reforçar a imposição da (sua) lei e dos seus interesses políticos, tudo isto numa obra que aborda diferentes maneiras de se relacionar com o mundo não humano, o do lobisomem, um ser que é definido como um "homem-lobo" (e não simplesmente como apenas lobo).

A vida do bandido tal como a do homem de Deus, não é um mero pedaço da natureza animal, sem qualquer relação com a lei e a cidade, é antes, um limiar indistinto e de passagem entre animal e ser humano de exclusão e inclusão: a vida do bandido é a vida de lobisomem, que é precisamente nem homem nem animal, e que habita paradoxalmente em ambos os lados da natureza sem pertencer definitiva e exclusivamente a nenhum . Ele é livre como um lobo, como um animal na floresta, mas ainda tem um coração humano, e esse coração está cheio de tristeza pois a sua vida não é medida pelos solstícios e segundo a cristandade quem não sofre não pode experimentar deleite ou seja a existência não terá valor sem dor. Vláčil mostra que a indistinção de se tornar animal pode levar a uma sensação de liberdade .

Afinal, o que está implícito na parte final do filme é que a linhagem dos Kozlík continuará a existir atravez dos filhos de Alexandra e Marketa. As crianças "crescerão e tornar-se-ão bons meninos e eventualmente súbditos cumpridores". O pequeno clã feudal e meio selvagem reunido em torno do seu líder sobrevivia nalgum lugar ao redor de Mladá Boleslav e para a autoridade real que estava a tentar a controlar a área, eles eram gente indisciplinada que perturbavam a ordem e no inverno roubavam os viajantes e era apenas por ser duro e astuto que Kozlík se mantinha na sua liderança conseguindo que o seguissem até a morte e isso é, embora menos formalmente poder político que propriamente poder carismático.

A guerra verdadeira que ameaçava a sua sobrevivência (mais do que as pequenas escaramuças com os clãs rivais) essa foi trazida pelas forças do rei pois os clãs não lutavam propriamente para capturar território ou subjugar forças indisciplinadas e para eles a morte era uma questão de vontade, sorte, chance, força, loucura. O filme carrega essa energia em cada um de seus poros, cada molécula - energia que não pode ser contida e direccionada.

Os personagens estão associados aos animais: Mikoláš com um falcão, Kozlík com lobos, Alexandra com cobras, Marketa com pombas. Mas essas associações não sugerem tanto uma identificação, mas sim talvez mais proximidade sendo que os animais associados poderão ter algo dos personagens mas isso não implica que eles sejam sempre aliados, e também podem desafiar seus humanos: uma cobra mordeu Adam pelo qual perdeu um braço. Lobos perseguem Kozlík, Marketa rejeita o cristianismo institucionalizado o qual as pombas representam. O clã Kozlík com o seu mito-história de lobisomens é aquele que emergiu da poeira do tempo nos lugares em que continuará a vaguear e os seus membros poderão ser exterminados como bestas dado que não fazem parte da nobreza (pan-europeia) à qual pertencem as tais caravanas que ocasionalmente por lá transitam. O filme apresenta-nos um mundo algo alienígena, um mundo em que as categorias "modernas" são apenas emergentes e onde se pode observar a luta de classes entre dois níveis de poder feudal que são adversários na forma e na organização - um local, múltiplo e singular e outro hierárquico, abrangendo o país (e o continente) . A força figurativa principal neste mundo é a do aparato estatal com o seu exército neste caso liderado pelo capitão Pivo enviado a fim de capturar os rebeldes, especialmente depois que o clã sequestrou o filho do bispo de Hennau um importante aliado dos Rei Checo.
Essas forças têm uma hierarquia clara, encimada por um rei distante e vêm de fora do área. Dentro dos clãs é diferente, as mulheres aparecem continuamente em diversas posições de autonomia e até mesmo ocasionalmente como guerreiros. Enquanto para uns a divisão do trabalho apresentada é essencial, outros assumem posições e papéis diferentes dentro do grupo, transmitindo uma visão da Europa anterior ao domínio do capitalismo patriarcal, cujas suposições ontológicas são comumente projetadas em formações sociais passadas. Pivo o militar do rei não é nobre, ganhou dinheiro com o fabrico de cerveja e adquiriu o seu estatuto pelo poder da riqueza sendo ridicularizado por não ser um verdadeiro nobre.

Os "selvagens" esses comunicam como pássaros, cantando, a imagem mostra apenas os movimentos de os personagens da floresta, pois a câmera muda de perspectiva constantemente e o som é descentralizado. Nunca temos certeza se são homens cantando ou pássaros invisíveis. Por vezes, é até impossível perceber quem está a falar, porque a câmara não fixa a origem da voz. As vozes são sussurradas ou ecoadas ou ambas as coisas... e tudo isto exigiu afinal o uso de uma linguagem cinematográfica inovadora em total contraste com o que até então se fazia. As cenas, as imagens a montagem são tão ambíguas, tão desequilibradas, que muitas vezes não é possível perceber o que aconteceu sem voltar a visionar . E é este o poder da poesia do mundo medieval de Marketa Lazarová, uma imersão quase total com uma sobrecarga sensorial que faz com que o espectador não consiga seguir tudo o que acontece e se acabe por se tornar inconscientemente (?) parte da trama do filme...

.........


Meticulosamente preparado pelo realizador (com argumento escrito em parceria com František Pavlíček e a partir do romance homónimo de Vladislav Vančura, uma obra prestigiada mas de difícil adaptação) e com o incrível tempo de produção de cerca 3 anos, magnificamente fotografado em 70 mm (anamórfico a partir de película 35mm) a preto e branco pelo genial cinematographer Beda (Bedrich) Batka com abundantes planos de câmara subjectiva de incrível modernidade (e sequências com uma dinâmica tal que num tempo em que o steadicam era algo inexistente representam um feito técnico admirável) resultando numa imagética que nos deixam mesmerizados pela riqueza de texturas e formas que hipnotizam, transportando-nos de forma algo alucinante uma idade média brutal, gélida e famélica em que o profano e o religioso se enfrentam, muito diferente da das belas iluminuras registadas no livros da época ou dos romances de cavalaria; Nada de cavaleiros andantes com brilhantes armaduras, deambulando e lutando em defesa da sua formosa dama vestida com ricos trajes, com grandes banquetes e bailes em castelos de magnífica arquitectura, nada nada disso, apenas choças, ruínas, barracos e figuras andrajosas mas filmados com tal luz e sensibilidade estética que causam fortíssima impressão visual e emocional. Variando de planos próximos a planos gerais distantes, um trabalho (de câmara) energizado combinado com uma montagem frequentemente desorientadora (e confusa?) Mas não foi apenas a fotografia a ser considerada "revolucionária", o som com os seus cânticos medievais com algo de litúrgicos e distorção sonora de gritos e ruídos (guizos principalmente ) sublinhando um ambiente quase sempre animalesco e violento, também foi inovador. Outra componente notável é sem dúvida a extraordinária cenografia com uma dimensão considerável, tudo real sem mate painting ou maquetas...

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A rodagem propriamente dita teve início em 1965 e levou 548 dias. Foi filmado em vários lugares da actual República Checa, como Lánská Obora, Mrtvý luh, Castelo de Klokočín... O orçamento previsto era de 7 milhões de coroas, mas "derrapou" para quase 13 milhões de coroas no final (um orçamento muito "generoso" para a época/país) sendo finalizado em 1967. A razão dessa "generosidade" poderá estar no facto de o realizador vir da unidade cinematográfica de "propaganda e informação" do exército checoslovaco onde fez a sua formação profissional em cinema e teve um bom desempenho ao serviço da pátria :mrgreen: os "camaradas" soviéticos adoravam épicos medievais que exaltassem a heróica luta dos povos (dos então países do pacto de Varsóvia) contra o invasor germânico... no entanto o filme viria a ser considerado "subversivo" no contexto da revolta anti-comunista na Checoslováquia de 67/68.

Dados os elevados custos de produção deste Marketa, František Vláčil rodaria no ano seguinte (1968) outro filme de temática medieval menos "incómodo": Údolí vce/O Vale das Abelhas para rentabilizar os cenários e adereços do "Marketa" mas também com um bom resultado artístico https://www.imdb.com/title/tt0122770/?r ... flmg_dr_18 (o último da trilogia medieval do realizador que se inicia em 1962 com Dáblova past)

Making of (um raro video, narrado apenas em checo, das filmagens de ML)




Surgido no ante-período da chamada "Primavera de Praga" https://en.wikipedia.org/wiki/Prague_Spring infelizmente o filme foi "retirado" de exibição (e esquecido) ao fim de pouco tempo, na sequência da violenta repressão desencadeada pela Rússia/URSS sobre o movimento de protesto e revolta do povo checo contra o regime ditatorial imposto por Moscovo em contrapartida pela "libertação" do jugo nazi.
No entanto apesar de os checos não o poderem continuar a ver, o filme chegou ao ocidente e teve algum impacto não tanto no público mas mais nos meios intlectuais e artísticos. A sua primeira apresentação do lado de cá da "cortina de ferro"** seria em Março de 1968 no Festival de Cinema Mar del Plata na Argentina logo seguida também seguida pela sua primeira exibição nos USA em Outubro desse mesmo ano no San Francisco Film Festival. Em maio de 1969 esteve presente em Cannes na "Quinzaine des Realisateures" no que seria o seu debut na Europa Ocidental. No entanto tirando algumas aparições pontuais foi remetido ao esquecimento até que em Janeiro de 2007 é relançado nos USA (incuído com destaque no Palm Springs International Film Festival), isto ainda antes do seu restauro (em 2013) e da sua edição em BD pela prestigiada "Criterion" e desde essa altura a sua popularidade tem vindo a crescer junto de um público mais elitista.

Duas páginas do storyboard da autoria do próprio realizador

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Consta que para atingir um total nível de "imersão" na época e na história, o realizador terá submetido o elenco a uma dura preparação em que os actores viveram durante meses numa floresta gelada vestidos com peles e roupas rústicas. Para além disso Vláčil estudou detalhadamente a forma de vida e as tradições dos povos da época consultando documentos históricos, de antropologia e mitologia e analisou também o perfil dos seus actores relativamente à psicologia dos respectivos personagens. As roupas, ferramentas e armas usadas reproduzem fielmente as da época nos mais pequenos detalhes, os cenários/locais foram escolhidos criteriosamente pelas suas eventuais semelhanças com as paisagens e arquitectura desses tempos (o guião situa os acontecimentos retratados no filme com tendo lugar entre Fevereiro e Agosto de 1250). O aspecto visual parece muito influenciado pelas pinturas de Pieter Bruegal tendo Vláčil seleccionado cuidadosamente seus actores, a maioria dos quais não eram sequer profissionais, pelas suas características físicas; por exemplo, antes de aparecer no filme, František Velecký (Mikolaš) era engenheiro de construção, Vlastimil Harapes (Kristián) era bailarino, Pavla Polaskova (Alexandra) era designer e Magda Vášáryová (Marketa Lazarová) era então uma jovem estudante universitária. De referir que até os movimentos dos animais envolvidos na história , quatro falcões, uma águia, uma ovelha, uma cabra, uma serpente, inúmeros veados, cavalos e lobos, foram "coreografados" com recurso a especialistas/treinadores. Enfim, com todo esse cuidado e dedicação o filme "parece" ter sido rodado no século XIII...

František Vláčil, um homem humilde (por detrás do mestre)
-com legendas em inglês-



......

Haverá certamente quem se sinta tentado a comparar esta obra peculiar a outras obras primas que abordam a mesma época: The Virgin Spring de Bergman (cruel sim mas também muito mais poético) ou Andrei Rubliov de Tarkovsky (mais espiritual, introspectivo?) ou até mesmo o crepuscular Hard to Be a God de Aleksey German (totalmente caótico), mas não, este é como foi dito anteriormente filme único, feito por um filosofo/poeta/cineasta sem formação de escola de cinema. Um filme inovador, poderoso, difícil (mais do que o 2001 :wink: ) com possíveis leituras múltiplas (e variadas). Vláčil retrata aqui os tabus primitivos sem pudor, a paixão incestuosa, a bestialidade, a sexualidade pagã, a violência brutal, a sociedade humana numa disputa entre selvajaria feroz e uma autoridade repressiva. O realizador recusa-se a "escolher" entre os rituais pagãos de sexo e sangue e o cristianismo puritano dos conventos, ou entre a violência do bando de Kozlík cobertos por peles e a dos cavaleiros alemães com as suas armaduras de ferro.

Image

Last but not least...



A análise de Gregory Salgado
https://www.youtube.com/watch?v=DTxtijvRuIo&t=815s

A crítica no New York Review https://www.nybooks.com/daily/2013/07/0 ... ge-spring/

Uma curiosidade mais...
Marketa Lazarová in BFI list of buried folk-horror treasures.
https://www.bfi.org.uk/news-opinion/new ... rror-films
Debate sobre impressões da obra no The Projection Podcast no link abaixo
http://www.projectionboothpodcast.com/2 ... -1967.html


Magda Vášáryová a então jovem actriz/estudante eslovaca que fez o papel de Marketa, agora já com 71 anos, teve uma longa carreira artística que terminou em 1988 dedicando-se actualmente à política (diplomacia). František Vláčil o realizador faleceu em 1999 tendo realizado 17 longas metragens e várias curtas. Uma curta entrevista com ex-actriz sobre a sua participação no filme em https://films.criterionchannel.com/curr ... arov-today

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O filme está disponível gratuitamente no Youtube com legendas PT (imagem de fraca qualidade) e em HD (720p) mas com legendas em inglês https://www.youtube.com/watch?v=0LNhVOrUe5I

Também foi editado em DVD em diversos países, edição feita a partir do restauro 4K de 2013 que é magnífico (não a velhinha da Second Run que também está à venda) com muito boa qualidade e preço mais acessível, e também em blu-ray (em três edições, uma da Criterion (legendas em inglês), R1, outra da Bildstoerung, R2 (só com legendas em alemão), esta sei que inclui um DVD de extras e um booklet com texto também em alemão e ainda uma outra edição Checa também R2 com legendas em inglês (com um preço a rondar os 25 euros :doubt: mas com custos de portes de outros 25 (?) isto em 2019 )

Sobre a qualidade do restauro:
The presentation of this classic Czech film is enormously impressive. The difference between this new Blu-ray release and Second Run's old R2 DVD release of the film really is like night and day. Detail and especially image depth are quite extraordinary. Close-ups and the larger panoramic shots boast superb contrast without ever looking artificially boosted. There are no traces of problematic degraining corrections - the ultra-fine and evenly resolved grain 4K scans deliver is always easy to spot. Also, there are no problematic sharpening corrections. It is very easy to tell that numerous debris, damage marks and cuts have been carefully removed because the film also looks notably healthy. Finally, there are no serious stability issues to report in this review. All in all, I think that anyone who has seen the R2 DVD release of Marketa Lazarova will be enormously pleased with the film's transition to Blu-ray. It looks stunning.https://www.blu-ray.com/movies/Marketa- ... ray/68386/


Coisa rara (nestes casos de cinema de paises de leste), o romance original foi publicado cá, pela Editora Quidnovi em 2012 e encontra-se de momento esgotado, (disponível apenas usado na wook). O romance de Vladislav Vancura é uma ajuda preciosa à compreensão da história e da época abordada no filme, embora não correspondendo integralmente ao argumento. A tradução portuguesa feita pelo casal luso checo Anna e José de Almeida é boa, em linguagem bastante acessível (não conheço obviamente a edição original, apenas a espanhola). Esta edição foi possível com o apoio e a supervisão do Ministério da Cultura da República Checa que garante a sua qualidade. Sobre o autor disse Milan Kundera "foi o meu primeiro amor literário"

Curioso que embora existam edições PT de outros filmes "checos&eslovacos" (alguns até foram cá exibidos comercialmente e mesmo durante a ditadura) igualmente interessantes, este que é considerado a obra máxima da cinematografia da antiga Checoslováquia http://dfcinema.com/2016/04/18/3147/ (um país que foi dividido em dois, pacificamente, em 1993 dando origem às actuais republicas Checa e Eslovaca) .... nunca cá foi editado.



(*)sobre a Boêmia na época retratada no filme ...
From the 13th century on, settlements of Germans developed throughout Bohemia, making Bohemia a bilingual country. The German settlers particularly brought mining technology to the mountainous regions of the Sudetes. In the mining town of Sankt Joachimsthal (now Jáchymov), famous coins called Joachimsthalers were coined, which gave their name to the Thaler and the dollar.
Meanwhile, Prague German intermediated between Upper German and East Central German, influencing the foundations of modern standard German. At the same time and place, the teachings of Jan Hus, the rector of Charles University and a prominent reformer and religious thinker, influenced the rise of modern Czech.
https://en.wikipedia.org/wiki/Kingdom_of_Bohemia

(**)https://www.significados.com.br/cortina-de-ferro/

O filme nos sites de referência:
https://www.imdb.com/title/tt0063278/
https://www.rottentomatoes.com/m/marketa_lazarova
https://en.wikipedia.org/wiki/Marketa_Lazarov%C3%A1

Edit: só hoje me apercebi do número de visualizações que este post teve (varias centenas?). Um texto quase tão confuso como o filme que tenta abordar. E é grato para mim perceber que tanto trabalho que deu, teve atenção. Voltarei um dia com outros textos sobre cinema de leste.
Last edited by technicolor on February 25th, 2020, 5:43 pm, edited 3 times in total.
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Re: Cinema de Leste

Post by nimzabo »

Films by Female Directors from the ‘New East’ - Top 10 of the Decade
https://przekroj.pl/en/culture/our-favo ... ew-east-ag?
JoséMiguel
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Re: Cinema de Leste

Post by JoséMiguel »

Acho que o technicolor deve criar um tópico para o filme "Marketa Lazarová", usando o conteúdo que ele colocou aqui. :wink:
technicolor
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Re: Cinema de Leste

Post by technicolor »

JoséMiguel wrote: April 2nd, 2020, 11:03 am Acho que o technicolor deve criar um tópico para o filme "Marketa Lazarová", usando o conteúdo que ele colocou aqui. :wink:
Apesar da minha relutância em dedicar um tópico a este filme o José Miguel resolveu avançar por conta própria e pediu-me que o colasse o texto que escrevi aqui, nesse tópico. Sensibilizado pelo seu entusiasmo resolvi aceder e o texto lá está... salut-)
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Re: Cinema de Leste

Post by nimzabo »

Vi o Buttoners e adorei.
Achei fora de série, quase tipo obra prima. É mais um daqueles filmes de leste muito bons que quase ninguém conhece.
Não existe nenhuma ocorrência cá no forum e por pouco também não havia do realizador que se chama Petr Zelenka.
Visualmente faz lembrar um pouco o Kaurismaki, mas é diferente.
Na verdade não acho que se pareça com muita coisa.
Vou procurar ver mais filmes dele.

Buttoners
https://www.imdb.com/title/tt0128292/re ... ef_=tt_urv
https://www.rottentomatoes.com/m/knofli ... ?type=user
Recomendo
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Re: Cinema de Leste

Post by diogogogo »

Relativamente a cinema de leste, esquecendo por um momento a obra do Tarkovski e outros filmes fantásticos devidamente divulgados, não entendo como é que o Idi i smotri não é mais conhecido. É um dos filmes mais intensos, com personagens melhor conseguidos e interpretações mais incríveis, e mais bem construido visualmente, narrativamente e em termos de sound design que já vi... No entanto, cheguei até ele meio por acaso há meia dúzia de anos e antes disso nunca tinha ouvido falar do filme. É incompreensível, devia ser uma obra essencial para toda a gente. Alguém com uma perspectiva sobre isto?

https://www.imdb.com/title/tt0091251/
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Re: Cinema de Leste

Post by nimzabo »

diogogogo wrote: June 22nd, 2021, 10:28 pm Relativamente a cinema de leste, esquecendo por um momento a obra do Tarkovski e outros filmes fantásticos devidamente divulgados, não entendo como é que o Idi i smotri não é mais conhecido. É um dos filmes mais intensos, com personagens melhor conseguidos e interpretações mais incríveis, e mais bem construido visualmente, narrativamente e em termos de sound design que já vi... No entanto, cheguei até ele meio por acaso há meia dúzia de anos e antes disso nunca tinha ouvido falar do filme. É incompreensível, devia ser uma obra essencial para toda a gente. Alguém com uma perspectiva sobre isto?

https://www.imdb.com/title/tt0091251/

O idi e smotri penso que seja um dos filmes soviéticos mais conhecidos. Costuma aparecer em listas de melhores filmes.
:arrow: viewtopic.php?f=11&t=46789&p=591471

Conheces estes?
https://www.imdb.com/title/tt0052600/?ref_=ttls_li_tt
https://www.imdb.com/title/tt0053106/?ref_=ttls_li_tt
https://www.imdb.com/title/tt0050634/?ref_=fn_tt_tt_13
https://www.imdb.com/title/tt0096126/?ref_=fn_al_tt_1
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Re: Cinema de Leste

Post by diogogogo »

Pode ter sido falha minha, mas efectivamente eu nunca tinha ouvido falar dele até há alguns anos.

Já vi o Ballada o soldate e o Letyat zhuravli na Cinemateca, os outros não conheço.
nimzabo
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Re: Cinema de Leste

Post by nimzabo »

Letter Never Sent e Heart of a Dog yes-)
(o IMDB já foi mais user friendly)
nimzabo
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Re: Cinema de Leste

Post by nimzabo »

Propaganda comunista anti-religiosa
https://rarehistoricalphotos.com/soviet ... a-posters/
ZédaAdega
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Re: Cinema de Leste

Post by ZédaAdega »

diogogogo wrote: June 24th, 2021, 4:48 pm Pode ter sido falha minha, mas efectivamente eu nunca tinha ouvido falar dele até há alguns anos.

Já vi o Ballada o soldate e o Letyat zhuravli na Cinemateca, os outros não conheço.
Ora bem, eu já chego tarde a responder a um comentário do verão de 2021, passado 18 meses, mas ainda assim aqui vai... :-)

O outros 2 filmes que o Nimzabo questionou são:

A) Neotpravlennoe pismo -> Epá eu não aprovo transliterações, estilo gajo de Alfama ou Gajo da Buraca do IMDB, vamos lá ver uma coisa, o título do filme é "Неотправленное письмо", se quisermos-nos referir a ele em português será "A Carta Nunca Enviada", ou em i nglês "The Letter never sent", é um filme pioneiro do ponto de vista da técnica, pois o cameraman ia a correr atrás dos actores, dentro de um um fogo florestal.



B) O outro filme é conhecido pelo título inglês "Heart of a Dog", que é uma adaptação da década de 1980 de um livro antigo de sci-fi, onde um cão é tornado humano. Para além dos méritos técnicos, artísticos e visuais do filme, o que me impressionou mais foi a crítica social da história original. Os cineastas soviéticos eram lixados e tramados e estavam quase sempre a provocar o regime lá do Soviete Supremo ou o Camandro. Estes cineastas eram frequentemente castigados pelo regime soviético, nos anos 1950 eram mortos, nos anos 1980 eram apenas banidos da profissão.



Nota: Não encontrei trailers em condições, qualquer dia faço eu uns trailerzinhos... :badgrin:

PS: Obrigado Nimzabo salut-)
Sou o JoséMiguel.

Esqueci-me da minha password... :wink:
Luis.Manuel
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Re: Cinema de Leste

Post by Luis.Manuel »

Este reaparecimento do JoséMiguel no fórum salut-) trouxe este tópico de novo à superfície e numa leitura atenta e picando o link no início (re)descobri outro excelente tópico dele (JoséMiguel) dedicado a trilogia do Jerzy Hofman feita a partir dos romances homónimos de Sienkiewicz.

Sobre a trilogia
http://forum.dvdmania.org/viewtopic.php?f=11&t=47061

Sobre os filmes
http://forum.dvdmania.org/viewtopic.php?f=11&t=47040

http://forum.dvdmania.org/viewtopic.php?f=11&t=47349

http://forum.dvdmania.org/viewtopic.php?f=11&t=47067


Era exactamente informação que me faltava para
compreender melhor o contexto histórico, político e temporal da obra (à qual conto regressar em breve) e que é algo importante para conhecer um pouco mais da história da Ucrânia (e da sua relação então conflituosa com a Polónia agora um dos seus aliados). Aliás, como é referido num post desse tópico um conjunto de 3 títulos (4 filmes na versão original) verdadeiramente notável a todos os níveis.
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