Sabemos que estamos num filme de Wes Anderson quando...
Como é norma nos filmes de W.A., o "valor facial" deste
Darjeeling Limited é ilusório, e não encontra uma justa correspondência no seu "valor real". Como dizem
los americanos, "there is more than meets the eye!". Isto para avançar que o design de produção e as características artísticas apuradas que adornam o conjunto são, para além de facilmente identificáveis enquanto iconografia "Wandersoniana", apenas parte de algo bem mais complexo e profundo. Pensem numa árvore e nas suas raízes. A aparência vistosa e colorida de uma árvore tem o seu sustentáculo debaixo do solo. Assim se passa também com as obras de Anderson - há muito para descobrir por baixo da bela camada de verniz (uma boa parte dela simbólica e metafórica). Para não fugir aos princípios do seu autor,
The Darjeeling Limited encena mais um caso de uma família desagregada e disfuncional, em que os seus elementos procuram encontrar, em conjunto, o seu lugar no mundo. Também como é habitual, o ponto de vista proposto é o de um grupo de três irmãos adolescentes acabados de serem largados no mundo de feras dos adultos, desamparados e deixados à sua sorte, e ainda presos emocionalmente à herança do núcleo familiar mais fechado (imaginando-se com o pai e a mãe a comandarem as coisas em geral). São estas crianças, desesperadamente e desastradamente à procura de referências, que percorrerão o "caminho espiritual" proposto na sinopse do filme para se descobrirem a si próprios, e levarem a bom porto os ritos (dolorosos?) da passagem à idade adulta que os estão a pressionar fortemente.
Típica imagem de pormenor a mostrar "iconografia Wandersoniana". Há uma quase-obsessão iconográfica pitoresca que percorre os filmes de Anderson, estabelecendo uma ligação contextual entre objectos decorativos, a definição local do espaço, e o contexto dramático em que as personagens se encontram.
Outra "imagem de marca" de Anderson: os planos de pormenor perspectivados de cima, e de forma próxima aos objectos, permitindo, ainda que num curto espaço de tempo, observar a "iconografia".
Idem aspas. Neste caso é mostrado um plano de tarefas criteriosamente delineado no tempo. Outra imagem de marca: uma das personagens é um "planeador obsessivo", quer em relação a si, quer em relação às personagens mais próximas.
Ainda outra "imagem de marca": a filmagem do espaço geográfico em compartimentos tipo miniatura. Resulta par tudo o que é planos indoor - porque estão delimitados pelo cenário físico, e essa estrutura serve de "régua" para os enquadramentos. Cada espaço/compartimento serve normalmente de montra visual para as idiossincrasias e para o estado de espírito da personagem que o ocupa. No caso desta imagem, isso não sucede, mas ao longo do filme haverá casos em que sim.
Outra "imagem de marca": os
gadgets anacrónicos. Não sei bem que aparelho é este (parece ser um ventilador). No filme seguinte, o Fantástico Sr. Raposo, há uns quantos
gadgets que também foram apelidados de "qualquer coisa - SONIC"
"Voltaire Nº6" (Chanel) sobre uma mala que parece ser uma piscadela de olho aos "sacos" Louis Vuitton. Por esta altura, Anderson já é quase uma referência autónoma de peso no mundo da moda, de tão forte que os universos ficcionais que cria são "decorados" e "vestidos".
Miúdos à beira de fazer um disparate irresponsável - comprar uma serpente venenosa...
O enquadramento e a composição da imagem são planeados com muito critério. Para quem gosta de fotografia, os filmes de Anderson são um manancial de criatividade (no preenchimento) e bom olho/gosto.
Os três miúdos rezam "afincadamente" num tempo Hindu, seguindo rituais Hindu. Até que um deles se lembra de acusar um dos outros de ter feito uma coisa má... e então a importância das rezas sai logo pela janela. Miúdos...
Os enquadramentos de Wes Anderson são invariavelmente captados de frente (mesmo que apanhem personagens de costas) e são "direitos", rectos, alinhados pelas linhas que compõem o cenário. Em sentido metafórico, parecem uma forma de tentar criar alguma ordem/organização num mundo de outra forma caótico. A criação de espaços geométricos "virtuais" em que as personagens encontram um cenário propício (que depois estão sempre a "dinamitar", porque a natureza humana é "irrequieta" por definição...)
Os três irmãos já estão noutro templo/local de culto a rezar - neste caso estão mesmo no meio de uma cerimónia religiosa, misturando-se com fiéis locais, e não abdicando de seguir os costumes e de utilizar os adereços próprios para a ocasião. Como é evidente, destoam fortemente dos fieis locais.
Depois de uma tragédia, a população de uma pequena vila agracia os visitantes, recebendo-os como irmãos, e dando-lhes abrigo e comida. Essa tragédia é o momento definidor em toda a viagem espiritual encetada. Ao envolver ao mesmo tempo uma experiência próxima da morte e outra próxima da vida, como que desbloqueia o marasmo espiritual e existencial em que os irmãos se encontravam desde a morte de seu pai. Há uma ligação estreita entre estes dois acontecimentos, aliás, de uma forma que nos é sussurrada através das imagens
A WA trademark again - imagem de cima na perspectiva de uma personagem.
"Cenas da vida da população local" - por compartimentos. A foto não mostra, mas a câmara está a fazer travellings pelo cenário, mantendo sempre uma trajectória paralela, e enquadrando sempre "de frente".
O ciclo da vida - a renovação. Morre-se e nasce-se. Celebra-se nos dois casos. O filme é mudo (ou as falas são em "estrangeiro" não traduzido - e logo incompreensíveis) nestas cenas que se passam na vila. As imagens transmitem tudo o que necessitamos de saber.
À espera do autocarro, e numa altura em que os ensinamentos recebidos na vila ainda não fizeram "click". E o monte de bagagem que carregam para todo o lado - e que não é mais do que o fardo do passado e a recusa em cortar como ele (ver fotograma final desta lista).
O agora...
... e o antes. As mesmas personagens, duas experiência de participação num funeral completamente diferentes - sobretudo por efeitos da cultura e da abordagem de cada sociedade perante a morte. Anderson liga os dois processos para mostrar que de facto a viagem acabou por trazer uma "mudança", um "crescimento", um "renascer para os desafios da vida", ainda que por vias sinuosas.
A lição termina com um agradecimento. O "click" vem logo a seguir.
Rezas num tempo cristão. É também um primeiro regresso a uma sociedade que lhes é familiar.
Simbologia "in your face": deixar as malas para trás é o "cortar das correntes com o passado". Uma nova etapa/aventura aguarda estes jovens, agora um pouco mais adultos do que quando apanharam a outra composição, no inicio do filme.