Já vi o filme entretanto, numa cópia "gloriosa", restaurada em 2015. Já tinha havido uma "reconstrução" em 1991, e esta abordagem agora devolve em grande parte o esplendor inicialmente captado (imagino que). Não sei que edições andarão aí no mercado (nacional e estrangeiro), mas este remaster de 2015 ficou mesmo muito bom.
Quanto ao filme, vou alinhar-me outra vez, e em grande medida, pelas palavras do Technicolor numa série de pontos. É o filme de Kubrick de que gosto menos, mas considero que ele fez um trabalho muito asseado e competente tendo em conta que "herdou" o projecto já sem grande margem de manobra, e que ainda teve de ajustar o trabalho em função do muito interveniente Kirk Douglas. De facto, isto não é um normal "peplum", e mesmo que a marca de Kubrick não esteja à mostra como está noutras obras, o filme tem argumentos de peso que o colocam acima da "concorrência", argumentos esses a que Kubrick não terá sido alheio, e que o elevam a milhas de produtos como o
Ben-Hur. O guião do Trumbo, em paralelo, cumprindo pelo menos os mínimo olímpicos, tem pormenores muito interessantes (entre partes muito boas, com diálogos inspirados e afiados, e outras para "cumprir calendário").
Percebo o porquê da associação da fita a valores marxistas (embora ache que são ideias infundadas) e também percebo o que leva o José Miguel a falar em "valores morais cristãos", porque independentemente da época retratada, e embora não haja nada que o mencione directamente, há uma série de "ilustrações" que comungam (lol) dos princípios cristãos. Não quero com isto dizer que acho que é um filme religioso e pró-cristão, até porque esses valores não são exclusivos do cristianismo (alguns até são comuns ao marxismo, como a ideia do "bem comum", ou da "igualdade" entre seres humanos, ou ainda da necessidade de não haver "senhores" e "escravos" na sociedade), mas entendo a associação. Não concordo é com a noção de serem "valores do antigamente", "muito perigosos para a liberdade do ser humano" - a mim parecem-me antes intemporais, nada ultrapassados, e a continuarem a fazer todo sentido hoje em dia, até cada vez mais. Já a associação à extrema direita e ao John Wayne não percebo de todo. A tal sequência nocturna, feita em estúdio, parece-me normalíssima - até está bem montada tecnicamente, e não vejo nunhum atentado ao "pensamento europeu pós-iluminismo" (só se a "iluminação do estúdio" estava de alguma forma mal projectada...
)
Bom, face a produtos mais modernos como as séries
Rome e
Spartacus, é evidente que esta peça range de caruncho a cada esquina - e no que toca à representação comportamental. A personagem central é unidimensional, no sentido em que é um poço de virtudes onde não cai uma mancha moral, enquanto que o "opressor romano" é representado por um bando de intriguistas que só têm em vista o poder. A única personagem com alguma espessura e interesse é para mim a interpretada por Charles Laughton - uma personagem que tem brancos e pretos e que se redime dos seus "pecados" no final.
Achei imensamente ilustrativas (no mau sentido) todas as sequências passadas na companhia do "grupo de Spartacus" após a fuga. O unico combate de exércitos que chegamos a ver tem uma óptima preparação (as tais tropas a andarem de um lado para o outro como se fossem a banda filarmónica), e um péssimo momento de combate - nessa altura nem o Kubrick tinha meios nem conseguiu disfarçar as debilidades de uma encenação de batalha em larga escala. Em compensação, achei muito estimulantes as cenas de intriga palaciana lá para os lados de Roma. É quase um mini-curso de política quanto a manobras de bastidores, jogo sujo, sede de poder e contorcionismo ideológico. A este respeito o Trumbo sabia bem o que estava a fazer. Fora isso, a primeira meia-hora é muito decente (até à fuga, e contando com o combate corpo a corpo entre Douglas e Strode), e a última meia-hora também é razoável - a sequência "I Am Spartacus!" merece o lugar de destaque que tem na história do cinema.
Entre o sete e o oito em dez.