Tropa Fandanga: o regresso da revista à portuguesa ao TNDMII

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rui sousa
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Tropa Fandanga: o regresso da revista à portuguesa ao TNDMII

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O 41.º artigo que escrevo para o Espalha Factos é a minha estreia na secção Palcos, e é uma crítica à fabulosa revista à portuguesa TROPA FANDANGA, que está em cena no Teatro Nacional D. Maria II. Vão ver este maravilhoso espetáculo! :-D
Recuperando as origens do género, atualizando as suas características mais populares como também inovando com apontamentos satíricos fresquinhos e surpreendentes, Tropa Fandanga é uma revista irresistível do Teatro Praga, que estará em cena no Teatro Nacional D. Maria II até ao dia 16 de março.

É a ressurreição da grande Revista à portuguesa no palco em que mais se celebrizou durante várias décadas. O último sucesso do género a passar pelo D. Maria II foi Passa por Mim no Rossio, de Filipe La Féria, que em 1991 esgotou dia após dia as bilheteiras do Teatro. Agora, a ideia do Teatro Praga passa também por, tal como na peça de La Féria, homenagear o mais típico que há na alma portuguesa. Mas há também a intenção de alertar os espetadores para a atualidade das rábulas (e muitas delas nem são invenções completamente novas – tal como as invocações a Raul Solnado e João Villaret, por exemplo) e para a seriedade que está presente (por mais subtil que seja) em cada gargalhada que o leque de personagens proporciona ao longo desta grande festa musical e maravilhosamente satírica.

Em Tropa Fandanga está lá tudo, desde os trocadilhos brejeiros e as piadas mais “popularuchas” e provocadoras (todas elas com um perfeito sentido de timing), passando pelas performances propositadamente exuberantes e encantadoras, até aos mais variados momentos musicais, onde encontramos novas canções e grandes sucessos da revista à portuguesa, reinventados pelo toque original e brilhante de Sérgio Godinho. Repleto de energia, luz, cor e sabedoria, eis um espetáculo invulgar que nos obriga a refazer a noção e os preconceitos que temos na nossa cabeça, quando pensamos em teatro de revista.

Sátira à sociedade, ao estado a que chegou Portugal, aos portugueses e à própria revista, Tropa Fandanga faz-nos entrar numa viagem maravilhosa pelos mundos que os atores visitam (ou revisitam), falando do passado e do presente, e das variadas coisas que os unem e opõem. A atualidade atualíssima que compõe os diversos momentos da peça, que dá uma vista de olhos não só ao país, mas também ao mundo, aos meios de comunicação social, à própria existência humana e às metáforas desta vida, em muitos pequenos apontamentos humorísticos e reflexivos implacáveis, que não perdem um pingo de seriedade e inteligência no meio de uma portentosa alegria e euforia divertida.

O humor popular de Tropa Fandanga não se limita a fazer rir pelos mais eficazes facilitismos – são as piadas que a maioria do público mais depressa consegue entender. Tal como todas as grandes peças – e todas as grandes revistas -, os seus autores souberam dar a volta à própria brejeirice, proporcionando-lhe um sentido e uma importância especiais, e que são intercalados pelos momentos mais sérios e corrosivos da peça. Felizmente, Tropa Fandanga não se resume a gargalhadas, a humor artificial que vemos para passar o tempo e que arrumamos na gaveta mais poeirenta da nossa memória sem sequer darmos por isso.

Há muita coisa hilariante, mas felizmente, a grandiosidade do espetáculo não se encontra só nos risos que provoca: há a fantástica direção de atores (é raro vermos um conjunto de artistas deste calibre reunido a pisar o palco para fazerem tão interessante trabalho) e os meios de produção, simples mas indispensáveis, que acompanham a par e passo as andanças desta tropa, que de militar tem pouco – mas não deixará de causar ao público uma impressão fortíssima, quase se diria até… de proporções bélicas e explosivas.

As lendas da revista e do mundo do espetáculo português ressuscitam ao longo das mais variadas peripécias políticas, sociais e culturais que nos são apresentadas (em grande destaque estão o recontar da famosa Ida à Guerra de Solnado pelo inigualável José Raposo, tal como a sua recriação arrebatadora do Fado Falado), presentes também na recuperação de diversas personagens-tipo que se tornaram habituais deste género teatral. E é uma delícia ver de novo as figuras que tão bem conhecemos, começando pelos chico-espertos tipicamente tugas até às novas tendências das “modernices” fornecidas pela globalidade cada vez maior que une todos os seres humanos.

Não faltam referências construtivas e críticas às temáticas quentes (e boas!) do nosso tempo, bem como a oposição com outras eras (o ano de 1914, início da Primeira Guerra Mundial, e 1974, fim do conflito no Ultramar) que, apesar de distantes cronologicamente, têm muitos e complexos pontos de contacto que são extremamente bem aproveitados na ligação entre cada rábula, no engenho das interpretações e na magnífica construção desta revista exemplar. Nesta base militar do riso e da sátira, é possível encontrar religião, uma própria reflexão sobre a revista e… esse reality-show peculiar e grotesco que é transmitido ad aeternum no quarto canal generalista. Sim, aqui, em Tropa Fandanga, tudo é possível.

Os portugueses precisam de uma revista assim, e já ansiavam há muito que algo completamente diferente como Tropa Fandanga (que felizmente sabe valorizar o passado e o legado deixado pelas suas influências) chegasse aos palcos. Sentimos falta de um espetáculo que soubesse homenagear e criticar a alma portuguesa e o que é isto de ser português, apanhando toda a conjuntura dramática e difícil que estamos a viver.

A peça pretende fazer o espetador pensar naquilo que está a ver, dando-lhe algo para rir (e, por um bom par de horas, esquecer-se das amarguras que preenchem o resto da cidade, e que parecem ser apagados pela magia do Teatro) e para pensar, para opinar, para contestar e para manifestar. Mais do que um simples objeto artístico, Tropa Fandanga é um grito de guerra à atualidade e aos problemas que Portugal enfrenta – e mais ainda, aos indivíduos que criaram e desenvolveram essas mesmas problemáticas -, não esquecendo o estado decadente a que o género teatral mais tipicamente português chegou, querendo reavivar a memória do povo que o tornou uma Arte tão procurada por várias gerações. Esta revista dá-nos a entender este tipo de Teatro é mais necessário hoje do que nunca.

É um caos nunca visto no D. Maria II, este que deslumbramos com Tropa Fandanga - ou que raramente se pode contemplar nesta casa. Uma desordem da qual nós também somos cúmplices, porque o espetáculo vive da energia do seu público, e do improviso que os atores podem aproveitar dos pequenos enganos, da vitalidade da plateia, do fascínio que exercem em cada uma das pessoas que está sentada na majestosa Sala Garrett. Tropa Fandanga sobressai-se como uma revista ímpar e que não é apenas mais uma a sair do forno pouco criativo e oco que caracterizam alguns casos mais recentes (que em quantidade são escassos).

Surpreende-nos a cada momento por entrar em caminhos formais e criativos que não estaríamos à espera de ver numa revista, e talvez a surpresa seja constante porque nos esquecemos como este género consegue ser tão versátil e imparável, já que estamos mais ocupados a testar a veracidade das ideias-feitas sobre o Teatro de revista que implantámos na nossa mente, e que de lá parecem não querer sair, nem com a maior das provas contrárias àquilo que pensamos. Sendo inesperada, Tropa Fandanga é fenomenal. Sendo inovadora, torna-se um trabalho que tem tanto de divertido como de arrebatador e de desassossegante, porque incomoda a nossa maneira de ver as coisas e arrisca sonhar voos mais altos e ambiciosos para contrariarem a tão falada ruína de um género artístico.

Defendendo a importância da Arte e da Cultura para a vida dos portugueses, este é um épico de Teatro, sensacional e versátil, que apela às nossas emoções de uma maneira agradavelmente obsessiva, e invulgarmente comovente: Tropa Fandanga não quer largar os seus espectadores, não quer ser abandonada por quem a viu como uma simples memória vaga de um bom espetáculo. Esta peça tem mesmo muito que se lhe diga, e no futuro, continuará a ser raro um trabalho destes ser concretizado no nosso país.

Uma peça absolutamente a não perder, que promete dar muito que falar, e que tem tudo o que é “nosso” lá representado: as nossas alegrias, as nossas tristezas, as nossas conquistas e as nossas feridas. Tudo isto está presente na grande batalha campal, cómica e fantástica, que acontece em palco, que nos maravilha e que sabe sempre voltar a surpreender. Tropa Fandanga é a peça que todos os portugueses deveriam ir ver neste preciso momento, correndo para o D. Maria II e esgotando todas as sessões que estão previstas até meados de março. É uma revista urgente, uma revista de arromba, é uma revista que dá uma nova força e uma maior justificação para se gritar a viva voz: “Viva a Revista!”
Texto com as fotografias em http://www.espalhafactos.com/2014/02/23 ... -maria-ii/
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