Cinema Iraniano

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Samwise
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Re: Cinema Iraniano

Post by Samwise »

Não sou conhecedor do cinema deste país, mas vi alguns filmes do Kiarostami e do Farhadi, e dos quais gostei bastante.

Marcou-me em particular uma invulgar experiência de cinema à conta do filme Shirin, do Kiarostami.



Na altura escrevi este texto:
Acerca de Shirin e da experiência que é ver o filme numa sala de cinema (e este é daqueles não concebo que possa ser visto de outra forma, sob pena de perder todo o fascínio por efeito da falta de envolvência):

Uma boa parte da gratificação que senti proveio do pulso firme que o realizador teve para gerir o jogo de artifícios e "efeitos especiais" de que o filme se compõe na sua totalidade e que tornou quase real a ilusão do "cinema dentro do cinema". Sabemos à partida que aquelas mulheres (as actrizes) não estão a ver filme nenhum, mas o facto é que a rigorosa edição e montagem de Shirin e a qualidade do acompanhamento auditivo permitem fazer-nos acreditar que sim - se fecharmos os olhos, ficamos a ouvir uma espécie de programa radiofónico de qualidade, feito com avultados meios de produção, um conjunto de intérpretes com vozes sonantes, e mais uma série efeitos sonoros realistas que ajudam a criar um ambiente, tudo ao serviço da narração de uma história de amor que tem tanto de arrebatador como de trágico. À conta da qualidade desta matéria prima (a força da história e a exuberância com que é narrada) temos meio caminho andando para sentirmos realismo na expressividade dos rostos que vemos no ecrã - e são só mesmo os rostos de cerca de uma centenas de mulheres, em planos fixos de 20 ou 30 segundos, que passam durante a hora e meia de filme.

De certa forma, esta necessária gestão milimétrica dos "efeitos especiais" e o facto de estamos na presença de um objecto singular na história do cinema fez-me recordar um outro filme, o Avatar, de James Cameron, não para estabelecer uma comparação entre os dois (algo que me pareceria bastante despropositado), mas para apontar onde está o verdadeiro sentido de originalidade e de grandeza cinematográfica. Avatar ficará na história como um marco na utilização da tecnologia 3D, como uma espécie de passo pioneiro na procura da exposição realista dos efeitos visuais. Só que a sua "originalidade" e o seu valor terminam aí, num ponto a meio de uma escala infinita, que nunca cessará de avançar na procura da perfeição e da "experiência limite". Shirin, pelo contrário, não é nada disso. É uma experiência que apesar de fortemente dependente da ilusão dos "efeitos especiais" não necessita de estar encavalitada na onda da tecnologia para sobressair, e que não é um degrau perdido no meio de uma escadaria maior. Shirin é essa escadaria toda. Poderá ter, quanto muito, alguns "descendentes bastardos", produtos que se servirão das ideias usadas por Kiarostami para garantirem aquilo que não conseguem atingir por virtude própria.

Comecei no filme por me perder na admiração dos rostos das actrizes e durante uma boa meia hora foi neles que foquei a atenção. Contudo, gradualmente, o meu interesse pela narração foi aumentando, até chegar a um ponto em que era por aí que o filme me prendia mais - o fascínio em conhecer a sucessão de acontecimentos que levam àquele final - e nessa altura entrei em estado de abstracção quanto aos rostos, olhava para eles mas era a história da narração que "via" - e a tal qualidade de que falei mais acima é suficiente para criar imagens nítidas. Menciono um "final" porque a própria narração é feita em analepse: é a Princesa/Rainha Shirin que conta a história do seu amor passado pelo Príncipe/Rei Khosrow. Começamos por saber do "final" da história, portanto.

Quase a terminar, e para a além de haver um momento muito interessante em que as emoções nos rostos daquelas mulheres e as emoções das personagens na narração se reúnem em dor uníssona, a minha atenção estava quase repartida, bifurcada ou balanceada entre visão e audição, de uma forma complementar e talvez já indissolúvel. A curiosidade é que a presença da actriz francesa Juliette Binoche, por ser o único rosto reconhecível no meio daquela "multidão", funciona, sempre que aparece, como uma ventosa que nos puxa para fora da imersão da experiência - não é nada que seja grave por aí além, mas talvez tivesse sido boa ideia ter ficado de fora, já que nada acrescenta ao filme, pelo menos se não considerarmos aquilo que é externo à experiência de visualização.

Admitindo que não é definitivamente um filme para todos os gostos, Shirin é a oportunidade de assistir a algo que é e não é cinema ao mesmo tempo - tal como aconteceu com Avatar. É cinema, mas não como o estamos habituados a ver.
E um artigo que na altura encontrei no Público online e que entretanto já desapareceu do site:
Elas são o verdadeiro rosto do Irão

Em 2007, para celebrar o 60º aniversário do Festival de Cannes, Abbas Kiarostami realizou "Where is my Romeo?", uma curta-metragem que figurou no filme colectivo "A Cada Um o Seu Cinema". O realizador deteve-se sobre rostos de mulheres numa sala de cinema onde se projectava "Romeu e Julieta", e do qual só ouvimos a banda sonora.

Em 2009, "Shirin" retoma e desenvolve essa ideia original substituindo os "amantes de Verona" pela lenda de Khosrow e Shirin. Citada no "Livro do Reis" de Ferdowsi [poeta persa do século X], esta narrativa de amor cortês foi convertida, no século XII, num longo poema épico por Nemazi [considerado o maior poeta romântico da literatura persa].

Para realizar o seu filme, Kiarostami reuniu 114 actrizes à frente de um ecrã branco. O jogo sobre o verdadeiro e o falso que define a sua obra depara-se com esta configuração particular. "Shirin" pode ser visto como um documentário sobre o trabalho de actriz, cujas emoções são ao mesmo tempo enganadoras e reais. Apesar de estar desprovida de imagens, a longa-metragem [a que as actrizes supostamente assistem em "Shirin"] possui uma banda sonora de extrema precisão que foi concebida "a posteriori".

Ela alterna as cenas de batalha e as juras de amor e permite seguir a história do rei sassânida [dinastia persa] e da princesa arménia. Não ver neste dispositivo mais do que um jogo seria redutor. Todos estes rostos revelam uma verdade do Irão. Com efeito, diferentes gerações de mulheres estão presentes, todas portadoras de uma história simultaneamente pessoal e colectiva.

Não é a primeira vez que Kiarostami dirige um filme convocando mulheres. Ele já o tinha feito com "Ten" (2002), que inaugurou um novo género no cinema iraniano - o dos filmes de mulheres. Seguiram-se outras obras, como "O Círculo" ou "Of side", "The Exam", de Nasser Refaie, ou "Women Without Men", de Shirin Neshat, apresentado em Veneza em Setembro de 2009.

Apesar de ter sido rodado fora do Irão, este último filme não é menos representativo de um forte movimento no cinema iraniano. Se a condição das mulheres no Irão suscita tais filmes, é porque o tema se presta a um paradoxo surpreendente. Ao contrário de outros países muçulmanos, as mulheres iranianas têm um papel activo na sociedade, conduzem e votam. Nos últimos 10 anos, elas tornaram-se maioritárias nas universidades. Mas aos olhos da lei islâmica, elas permanecem inferiores aos homens. O véu simboliza essa discriminação.

A primeira manifestação que se seguiu à revolução de 1979 foi de mulheres contra o uso obrigatório do véu, a 8 de Março de 1979. A lei só entraria em vigor em 1982, dada a forte resistência. Em 1992 surgiu o primeiro jornal feminista, "Zanan", que viria a ser proibido em 2008. 2006 vê o lançamento da "Campanha de um milhão de assinaturas", que reivindica a igualdade entre homens e mulheres no seio da sociedade iraniana. Inúmeros intelectuais e universitários participam na campanha, incluindo Zarah Rahnavard, mulher de Mir- Hossein Moussavi, o qual viria a reclamar a vitória nas últimas eleições presidenciais contra Mahmoud Ahmadinejad.

Se Neda Agha-Soltan, morta nas ruas de Teerão a 20 de Junho de 2009, se converteu no símbolo de uma possível mudança no Irão, é porque ela representa tudo o que o regime rejeita: uma mulher moderna, instruída, e que reivindica os seus direitos. Porém, foi esse mesmo regime que contribuiu, sem o saber, para a tomada de consciência das mulheres. Tranquilizadas pelo uso obrigatório do véu, as famílias tradicionalistas do Irão aceitaram enviar as suas filhas para a universidade. Foi assim que as mulheres dos estratos populares tiveram acesso a uma formação superior. Por outro lado, a explosão demográfica levou o Estado a encorajar a contracepção. A idade média do casamento no Irão é hoje 26 anos e o número de filhos por mulher passou de seis a dois em 30 anos. O Irão tem imensas mulheres escritoras, jornalistas, realizadoras. Bem mais do que os seus dirigentes conservadores, elas são o verdadeiro rosto do Irão estas "filhas da revolução".

Agora que a placa de chumbo voltou a abater-se sobre o Irão, as lágrimas das espectadoras de "Shirin" são as lágrimas das mães e irmãs que se lembram do que o país viveu no último ano. Mas a resistência continua. No fim do filme, uma espectadora sorri. Ela sabe que a situação irá mudar e que o Irão será uma república plena e inteira que não terá outro nome: iraniana.

*Crítico de cinema, iraniano, residente em França, é autor de "Chris Marker" (Cahiers du cinéma-CNDP, 2003), "Godard neuf zéro, les films des années 90 de Jean-Luc Godard" (Séguier-Archimbaud, 2006), "Wong Kar-wai, la modernité d'un cinéaste asiatique" (Amandier-Archimbaud, 2007).

Bamchade Pourvali (PÚBLICO)
«The most interesting characters are the ones who lie to themselves.» - Paul Schrader, acerca de Travis Bickle.

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Samwise
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Re: Cinema Iraniano

Post by Samwise »

Do Panahi só vi um filme, o Taxi (imdb, wiki), uma peça que é um acto de insurreição, revolta e denúncia contra o banimento que o governo lhe impôs (proibido de realizar filmes). É também uma experiência singular de cinema, dado que o filme representa literalmente a realidade e faz a ponte entre ficção e documentário de uma forma muito original.

Deves gostar deste José Miguel.
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paupau
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Re: Cinema Iraniano

Post by paupau »

Mais um desconhecedor do cinema iraniano por aqui, se vi meia dúzia já foi muito. É muito difícil arranjar filmes iranianos seja em que edições forem, reparem como quase todos os exemplos apontados são relativamente recentes (90´s para a frente). Onde ver filmes do Irão dos anos 40, 50 ou 60?

Dos que vi, o destaque vai para o Close Up do Kiarostami. Vi lá coisas que não vi em mais nenhum filme até hoje.
CC - 174 MoC - 73 BFI - 21
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Re: Cinema Iraniano

Post by nimzabo »

pois...
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Re: Cinema Iraniano

Post by Salgueiro »

paupau wrote: March 6th, 2017, 10:06 pm Mais um desconhecedor do cinema iraniano por aqui, se vi meia dúzia já foi muito. É muito difícil arranjar filmes iranianos seja em que edições forem, reparem como quase todos os exemplos apontados são relativamente recentes (90´s para a frente). Onde ver filmes do Irão dos anos 40, 50 ou 60?

Dos que vi, o destaque vai para o Close Up do Kiarostami. Vi lá coisas que não vi em mais nenhum filme até hoje.
É verdade que não existe muitos filmes iranianos antigos mas há alguns dos anos 90 para trás disponíveis em dvd edição americana.
Desta lista pode-se encontrar vários na amazon.com:
http://www.tasteofcinema.com/2014/15-es ... ian-films/
As listas valem o que valem, mas penso que podem ser um bom indicador.

Ficam aqui 2 exemplos. Penso que pesquisando mais se encontram outros filmes.
https://www.amazon.com/Cow-Ezzatolah-En ... 92ZV06ZBNE

https://www.amazon.com/Moment-Innocence ... Makhmalbaf
Cinema Asia - A minha página Facebook sobre cinema asiático.
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Re: Cinema Iraniano

Post by nimzabo »

Vi o A Moment of Innocence
http://www.imdb.com/title/tt0117214/
https://www.rottentomatoes.com/m/a_moment_of_innocence
O filme na sua aparência é simples mas confesso que percebi melhor depois de ler algumas reviews.
Sozinho não ía lá. Momento chave no final.

P.S. O Sabor da Cereja está nos cinemas (não sei onde)
drakes
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Re: Cinema Iraniano

Post by drakes »

Qeysar ou Gheisar (1969)

http://www.imdb.com/title/tt0064368/
https://en.wikipedia.org/wiki/Qeysar_(film)

filme é um marco no país, mas tirando alguma mostra iraniana, é raro, vez ou outra aparece cópias no youtube, já que o filme parece estar com copywright livre, tanto que faz tempo que está na minha lista para ver.

nimzabo
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Re: Cinema Iraniano

Post by nimzabo »

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Re: Cinema Iraniano

Post by nimzabo »

Acabei de ver o 'A Time for Drunken Horses'...
http://www.imdb.com/title/tt0259072/?ref_=ttls_li_tt
http://www.imdb.com/title/tt0259072/reviews?ref_=tt_urv
É uma obra-prima que dura 1h15m e sem duvida um dos melhores filmes iranianos.
É por filmes como este que gosto de cinema do mundo.
10/10
nimzabo
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Re: Cinema Iraniano

Post by nimzabo »

Hoje vi outro bom, este dos primeiros anos do Asghar Farhadi: Beautiful City
O amigo de um rapaz de 18 anos condenado à morte tenta convencer o pai da rapariga assassinada a perdoa-lo.
http://www.imdb.com/title/tt0424434/?ref_=rvi_tt
https://www.rottentomatoes.com/m/shahre ... tiful_city?
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Re: Cinema Iraniano

Post by nimzabo »

Vi mais um filme do Asghar Farhadi: Fireworks Wednesday
https://www.imdb.com/title/tt0845439/?ref_=ttls_li_tt
https://www.rottentomatoes.com/m/fireworks_wednesday
Francamente bom. Mais um.
yes-)
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Re: Cinema Iraniano

Post by nimzabo »

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Re: Cinema Iraniano

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Re: Cinema Iraniano

Post by nimzabo »

nimzabo wrote: October 10th, 2022, 9:23 pm Uma Rapariga Regressa de Noite Sozinha a Casa
https://www.imdb.com/title/tt2326554/?ref_=ttls_li_tt
https://www.rottentomatoes.com/m/a_girl ... e_at_night
Filme iraniano a preto e branco, o menos iraniano possível, antes parece uma mistura de Jim Jarmusch com outra coisa qualquer, não sei bem o quê.
Apesar de alguma bizarria da história (e de ser enigmático) em termos cinematográficos é especial. É visualmente surpreendente, noturno, e a música também merece uma menção.
Evil_Djinn
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Re: Cinema Iraniano

Post by Evil_Djinn »

Bom tópico !

Do Irão recomendo-vos este filme:

Image

https://www.imdb.com/title/tt0191043

Sinopse

"A história gira em torno de um menino cego chamado Mohammed, que sai da sua escola especial em Teerão para as férias de verão. O Pai, envergonhado e sobrecarregado pela cegueira de Mohammed, chega atrasado para buscá-lo e tenta convencer o diretor a manter Mohammed na escola durante o verão. O diretor recusa, então o pai de Mohammed eventualmente leva-o para casa."

Curiosidade: O rapaz, na vida real também é cego o que faz como que a carga dramática seja mais genuína.

Do mesmo realizador temos ainda o "Children of Heaven (1997)" https://www.imdb.com/title/tt0118849 já aqui mencionado e o "Baran (2001)" https://www.imdb.com/title/tt0233841

Infelizmente ainda não tive a oportunidade de ver estes dois últimos, mas parecem promissores.
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