É uma óptima notícia ter um realizador como o Denis confirmado no projecto pelo próprio Herbert-filho. Significa que há toda uma estrutura-vital de produção preparada para que o realizador não ande "perdido" com a extensão do material. Mas gostaria que o Denis fosse um amante do livro original - que não sei se é - e que prestasse atenção à imensa riqueza histórica que sustenta a narrativa, algo que decidamente não é fácil de transpor para um filme de duração muito limitada.
Acerca de "Dune" filme, versão de 1984 pela mão do realizador David Lynch e produção pelo clã De Laurentiis (pai e filha, muito intervenientes, segundo consta), começo por afirmar que é obra que à partida sairá largamente incompreendida por quem não tiver lido o livro. Não que seja por defeito da realização ou da adaptação do argumento, mas porque não há forma humanamente possível de colocar grande parte dos detalhes importantes do livro num filme de duas horas (ou mesmo três, ou quatro).
Falo, por exemplo, e para começar, das motivações e da profundidade das personagens. Cada uma delas é caracterizada, no livro, não só pelas afectações estritamente pessoais, aquilo que forma o seu carácter, mas também pelo influência do pólo clã/família/linhagem a que pertence, e pela cunhagem histórica desse mesmo clã, com toda a envolvente circunstancial que tal herança acarreta. Dito de outro modo, olhar para as acções das personagens, no filme, completamente despidas de um contexto explicativo e historicamente relevante, é ver hologramas sem espessura dramática, seres com motivações que apenas existem porque o argumento diz que é assim (sem no entanto nos mostrar porque é que é assim). Para quem não leu, olhar para a maioria destas personagens é ficar com grandes pontos de interrogação a flutuar na cabeça. É aceitar e dizer que sim, siga, sem no entanto acreditar.
É muito agradável olhar para os rostos em carne osso, para contornos físicos concretos, para a concretização visual daquilo que apenas imaginámos enquanto líamos o livro, ainda por cima quando pensamos no soberbo cast que foi reunido e no conjunto de interpretações bastante conseguidas, mas, volto a frisar, de nada serve isto sem uma base comum agregadora. Base essa que existe para quem a aprendeu, mesmo que inconscientemente, do livro, e que não existe para todos os outros espectadores.
Relacionado com o que acabei de referir para os personagens, temos o mesmo problema, de um ponto de vista mais abrangente, na envolvente social. Enquanto o livro vai doseando toda a exposição do passado histórico justificativo daqueles acontecimentos (daquele choque de forças, naquele momento, naquele espaço-Arrakis) ao longo de toda uma narrativa, o filme limita-se a mostrar, num extenso episódio, o resultado final dessa "evolução". No fim de contas vai dar ao mesmo: quem não leu o livro fica a ver navios. Fica até a pensar que tudo é estranho em demasia e que nada faz sentido. Desenvolvendo esta questão, temos que não há quase choque político (apenas há duas forças em guerra), não há abrangência social (os Fremen estão parcamente caracterizados, parecem um bando de selvagens, só para dar um exemplo), não há preocupação alguma pela questão ecológica (mas já há um gosto refinado pelas batalhas campais, coisa que o livro foca pouco). Tudo se esboroa na falta de espaço para explicar o que vem de trás, o que vem de largos séculos de coabitação de forças em oposição na galáxia.
Por último, a questão dos diálogos. Apesar de achar que tudo ou quase tudo está perfeito nesse primeiro capítulo da saga Dune, sempre considerei as conversas que povoam o livro uma das suas principais forças. Herbert tinha um fraco por questões de diplomacia, e os diálogos são, cada um deles, autênticos tours de force para o provar - engenhosos, envolvente, artísticos, recheados de surpresas e reviravoltas na dominação, alguns deles ocupando páginas e páginas de confronto entre personagens. Não existe um único diálogo memorável durante o filme todo. Nem um me chamou a atenção, quer fosse pela intensidade, quer fosse pelos méritos na apresentação de argumentos.
Em resumo, aquilo que era uma obra relativamente contida em termos apresentação da sua vertente fantástica, de "ficção científica", em favor da faceta social e sociológica, passa a filme com uma inversão total das suas referência - perde-se no importante e ganha-se no artifício. Temos muitos efeitos especiais de naves espaciais, de combates de infantaria no deserto, de vermes gigantes a abrirem enormes bocarras, de grandes cenários futuristas, planetas e personagens estranhíssimos, um guarda roupas intemporal extravagante, enfim, quase tudo aquilo que era secundário no livro é-nos apresentado no filme como prato principal. E o que irrita é que este "papel de embrulho" até está bem feito e imaginado. Só que sabe a pouco. Sabe à espuma que fica no topo da cerveja...
"Dune" mereceu os quatro anos que a produção dedicou à sua feitura? A meu ver, um claro NÃO. O resultado final não atinge qualidade suficiente para justificar tanto tempo dedicado.
Para quem leu o livro, o filme vê-se sem grande entusiasmo, com muitas decepções e com alguns bocejos pelo meio. 6/10
Para quem não leu o livro, o melhor mesmo é manter-se afastado.
Duas notas adicionais:
Uma para a versão estendida de três horas (a que o Lynch queria lançar no mercado e o Dino De Laurentiis não deixou) - pouco ou nada se ganha com a inclusão de três ou quatro cenas adicionais, mesmo quando uma delas inicia o filme com uma explicação cuidada do passado histórico daquela realidade. Prefiro a versão curta, para todos os efeitos.
Outra nota para uma parte dos extras que menciona uma "entrevista com Frank Herbert" e que tem a duração de 1:38 min. O problema é mesmo esse, um minuto e trinta e oito segundos de entrevista, e que mais não é do que o Herbert a fazer uma breve menção ao "Dune" num curto trecho retirado de uma entrevista mais extensa, com outro propósito qualquer que não conseguimos descortinar. Nada que justifique a inclusão feita, nos moldes em que foi feita.