Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

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JoséMiguel
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Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by JoséMiguel »

Восхождение / The Ascent

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Título original (russo): Восхождение
Título internacional (inglês): The Ascent
País(es) de origem: URSS: Rússia
Data de lançamento: 2 de Abril de 1977
Realizadora: Larisa Shepitko
Género(s): Drama / Guerra
Duração: 106 min

IMDB / Wikipedia (versão russa) / Wikipedia (versão inglesa)


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Sinopse:

As últimas horas de vida de soldados, mulheres e crianças, acusados de pertencerem à Resistência Bielorussa, que sabem que serão enforcados de madrugada, na Bielorússia então ocupada pela Alemanha Nazi.

Excertos criados por mim:


Soldado capturado na 1ª metade do filme. Cena poética, lindíssima e brilhante.


Preparação do enforcamento (não é spoiler, fiquem descansados). Cena dramática e sinistra estilo "A Lista de Schindler".


Prémios
1977 - XII CCF in Riga : Grand Prize, Prize of the Union of Cinematographers ( Larisa Shepitko )
1977 - XXVII International Film Festival in Berlin : Grand Prix " Golden Bear "award FIPRESCI premium OSIC International Catholic Film Center ( Larisa Shepitko )
1977 - International Festival "Festival of Freedom" in Sopot : Prize "Statue of Liberty" ( Larisa Shepitko )
1979 - State Prize of the USSR : "For films of recent years," Vladimir Chuhnovu (posthumously), Larissa Shepitko (posthumously)
1990 - XL IFF in Berlin : participation in the program «Retrospektive»
2010 - Berlin International Film Festival: the participation in the program "Retrospektive" [24] .

Nota: Traduzido para inglês a partir da versão russa do wikipédia.

Curiosidades

Último filme da mulher-realizadora ucraniana Larisa Shepitko, que morreu num acidente de automóvel durante as filmagens do seu filme seguinte, enquanto andava à procura de locais realísticos existentes, para filmar cenas correspondentes.

Para quem não sabe, nos créditos de muitos filmes soviéticos existe uma categoria chamada "Location Scout" ou "Batedor de Locais", em que se ia à procura de um apartamento, ou das ruas de uma cidade, correspondentes ao contexto do argumento, de forma a evitar a utilização de estúdios artificiais. Como exemplo, quando o cinema soviético pretendia reconstituir a arquitectura ibérica de Portugal, Espanha ou América Latina, filmava na cidade portuária de Sevastopol, no mar negro (região recentemente anexada pela Rússia em 2014).

E foi a desempenhar essa função que a realizadora Larisa morreu, num acidente de viação. No mesmo automóvel ia também o cameraman Vladimir Chukhnov, que filmou as cenas magníficas dos dois excertos que eu criei. Ele também morreu nesse acidente.

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Por outro lado, não existia a função de produtor (film producer), já que não existiam estúdios privados e era o estado que comparticipava a 100% os filmes.


Filme gratuito no You Tube, legendado em inglês (parceria Mosfilm):

https://www.youtube.com/watch?v=UEVZOj7uYps


Nota: Crítica a escrever mais tarde, em mensagem separada (quando eu estiver inspirado). Mas até lá podem comentar. yes-)
rui sousa
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by rui sousa »

Tenho este filme há algum tempo aqui para ver. Quando chegar o momento certo, farei isso! :)
Telmo R.
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by Telmo R. »

Curiosamente foi o único filme que vi da realizadora. Era mulher do também realizador Elem Klimov.
os filmes que vejo: letterboxd ou mubi | a minha colecção de dvds: cine-dvd collection
paupau
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by paupau »

Ja vi este filme ha uns tempos e lembro-me bem que tem muitos elementos alegoricos e/ou religiosos misturados no contexto principal da WWII, o que torna-o diferente da maioria. O final, muito poderoso, e basicamente a Paixao de Cristo. Mas ha muitos pequenos pormenores do genero. Logo na cena inicial, apos o ataque dos nazis, estao a comer feijoes e ha um ferido e a forma como recebe os feijoes e claramente como se estivesse a receber uma ostia. Nao me lembro o suficiente para acrescentar muito mais, mas e sem duvida um grande filme.
CC - 174 MoC - 73 BFI - 21
JoséMiguel
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by JoséMiguel »

Vão enforcar-me de madrugada

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Escolhi esta imagem arrepiante para introduzir a minha crítica. É um dos screenshots que tirei e carreguei no meu photobucket.

A razão da minha escoha, tem o objectivo de chamar a atenção para a originalidade, seriedade, criatividade e coragem dos cineastas da europa de leste, para quem, cada filme individual era uma tentativa de progredir e avançar a 7ª Arte, a nível técnico e artístico, e simultaneamente "mexer" com o espectador e prococar neste um pensamento crítico e analítico.

Uma menina a morrer enforcada é uma imagem bastante forte por si só. Mas neste caso temos ainda o realismo (autencicidade, lógica e credibilidade) característico do cinema de leste, que amplifica ainda mais a situação.

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Essencialmente este é um filme simples, com lógica, acerca de um enforcamento, apenas isso... mas é um filme muito bem planeado e executado.

Este filme possui uma componente artística e criativa muito forte e acentuada, mas sem atropelar a lógica e a credibilidade. Há muito cineasta europeu que faz filme "artístico" e se está borrifando para a lógica, a isso é vulgarmente chamado "cinema intelectual", corrente de que eu não gosto... Este filme não é assim! Na minha opinião aqui são conseguidas cenas poéticas e artísticas, mas que além de serem feitas com toda a lógica, ainda possuem o bónus de um realismo e credibilidade acima da média.

Refiro-me às duas cenas que capturei e coloquei no meu canal do Vimeo (que coloquei na ficha técnica). Eu adoro as duas cenas, mas reconheço que a minha opinião e gosto são muito pessoais e subjectivos.

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Este filme possui a característica estranha e peculiar (já referida e muito bem pelo Paupau) de fazer um simbolismo/paralelismo com a crucificação de Jesus Cristo.

Antes de mais nada, eu sou ateu e não gosto de religiões. Na primeira vez que vi este filme há dois anos, não dei por nada e só mais tarde li no wikipédia que a realizadora Larisa Shepitko impôs no casting que o personagem principal tivesse feições similares às pinturas clássicas de Jesus Cristo, segundo a religião cristã ortodoxa (que até podem ser diferentes dos desenhos inventados pelos pintores do bloco/regime religioso católico).

Isto é referido e documentado na versão russa do wikipédia, e a imagem do Jesus, segundo os cristãos ortodoxos, que lá colocaram é esta (embora o nome do pintor não pareca ser da região europeia sob o domínio da igreja ortodoxa):

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O actor escolhido para a personagem principal é este:

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Eu pessoalmente não ligo nada a religião e gostei de ver o filme sem reparar em nada disto, que para mim é apenas uma curiosidade que não melhora nem piora o filme, que é muito sólido por si só, sem esta camada de simbolismos religiosos.

Mas fico desconfiado de que quem gostou do filme "A Paixão de Cristo" (eu não gostei) possa adorar este The Ascent.

Eu gostei do filme sem me aperceber destes simbolismos, pois ele é muito poderoso na narração directa e concreta que faz. Quem gostar dessa técnica/corrente dos simbolismos, talvez ache o filme ainda melhor do que eu o achei... é bem possível...

Uma coisa é certa, se a realizadora ucraniana recorreu a estes simbolismos, como forma de cinema de intervenção político-social, em protesto contra a falta de expressão e liberdade religiosa, imposta pelo governo soviético, eu tenho de a respeitar e admirar. Acho que a religião é uma estupidez, mas as pessoas têm o direito a ela, desde que não interfira com a liberdade dos outros (inquisição medieval), nem a imponham aos outros (testemunhas de jeová). "A nossa liberdade acaba onde a dos outros começa".

Parece-me que se calhar a Larisa queria fazer "A Paixão de Cristo" em 1977, mas como não a deixaram (leis restritivas do governo soviético), ela fez antes este filme de intervenção... não faço ideia... mas admiro o cinema de intervenção seja a nível social, político ou outro (gosto muito dos filmes do Stanley Kramer).

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Eu não irei dar classificação, porque já vi o filme há dois anos e não me lembro de todos os pormenores. Estive apenas a rever algumas cenas para criar excertos e imagens. Acho o filme excelente e a minha classificação seria entre os [85-95]%.

A (minha) classificação deste Восхождение / The Ascent (1977) nunca pode ser 100% porque existe um filme romeno de 1964 muito semelhante a este, do qual gostei mais e que me deixou mais impressionado, cujo título se traduz em português como "A Floresta dos Enforcados". Fiz uma crítica pequena há bastante tempo aqui:

http://forum.dvdmania.org/viewtopic.php?f=11&t=46939

E um trailer amador do filme romeno com imagens impressionantes de um enforcamento:
Nota 1: São dois filmes parecidos e quem está interesado num, poderá estar interessado no outro.

Nota 2: Os meus comentários pessoais acerca de religião destinam-se apenas a elogiar este The Ascent, de forma a mostrar que um ateu assumido como eu, acha o filme execelente por si só, sem a camada de simbolismos religiosos. Achei que era importante destacar e esclarecer isso. Eu teria evitado por completo referir a componente reigiosa, não fosse o assunto estar tão bem documentado e destacado na versão russa do wikipédia. Não tive qualquer intenção de ofender as crenças dos outros ou impôr as minhas crenças a eles.
JoséMiguel
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by JoséMiguel »

Elegia (tributo funerário poético) à morte da realizadora, na forma de um filme criado pelo seu marido viúvo (Elem Klimov) também realizador do estúdio Mosfilm.

Este documentário fúnebre/poético é uma produção do estúdio Mosfilm, com cerca de 20 minutos de duração. Versão integral, legendada em inglês, abaixo:



Comentário

Eu fiquei sensibilizado com esta homenagem que o marido e colega realizador, lhe fez quando ela morreu num acidente de viação. Recordo que o Elem Klimov é o realizador do mítico filme "Vem e Vê" (acerca de limpeza étnica ao povo eslavo, pelas S.S. alemãs).

Este documentário/tributo inclui filmagens a cores do filme do tópico "The Ascent", com a realizadora soviética a comandar as operações, na preparação da cena do enforcamento.

Talvez um comentário que me pareça oportuno escrever acerca de realizadoras mulheres, é que o sistema de Hollywood parece-me ser uma monarquia absoluta, em que o Michael Douglas é actor, por motivos monárquicos, apenas por ser filho do Kirk Douglas e a mulher-realizadora Sophia Coppola é realizadora apenas por ser filha do Francis Ford Coppola... o resultado é o filme "Marie Antoinette", que consiste numa vandalização histórica, em que a realizadora americana mete os nobres franceses a dançar música tecnho ou Hip Hop numa discoteca.

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Sofia Coppola, exemplo do sistema monárquico (Feudalismo) no Cinema norte-americano.

Pelo que eu li no wikipédia, esta Larisa Shepitko não tinha nenhuma cunha, nem era filha ou sobrinha de nenhum personagem do Soviete Supremo, apenas conseguiu ingressar no curso de Cinema, e os professores gostaram do trabalho dela.

Pelo que me parece, o curso universitário de Cinema na URSS era semelhante ao curso de Medicina em Portugal, ambos com numerus clausus , definidos pelo Estado (Ministério) e pelas autoridades competentes. O difícil era entrar no curso (Medicina em Portugal ou Cinema na URSS), tirando o canudo havia sempre emprego à espera, que no caso soviético incluía todas as funções de Cinema, desde operador de câmera, técnico de iluminação, actor ou até mesmo costureiro ou apenas figurante. Este modelo soviético de cinema era semelhante à composição interna de uma orquestra musical sinfónica, em que todos os membros tiraram o mesmo curso e até foram colegas na faculdade, mas só um pode ser maestro (ou realizador) e iam alternando as funções entre eles. Eu já topei no wikipedia, que em cada página de um realizador soviético, surgem as funções dele como actor, operador de câmera, figurante, costureiro e afins.

O que escrevo no parágrafo anterior é muito pertinente para o tópico "Cinema de Leste", pelo que se calhar também devia incluir isto por lá...

Compositor musical

Não tinha ainda referido na ficha técnica, que a excelente banda sonora do filme, foi composta pelo Alfred Schnittke. Não irei escrever novamente os meus elogios musicais, a este compositor de música para filmes soviéticos, pois já fiz uma apresentação ao homem, no meu tópico de um conto de fadas soviético aqui:

viewtopic.php?f=11&t=49771&p=604984

...que passo a citar:
Compositor da banda sonora

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Alfred Schnittke (1934-1998)

Wikipédia (inglês): https://en.wikipedia.org/wiki/Alfred_Schnittke

Alfred Schnittke foi um conceituado compositor russo do séc. XX, que eu não conhecia, antes de ouvir o trabalho dele neste filme. O texto seguinte é muito interessante:
It was Mozart and Schubert, not Tchaikovsky and Rachmaninoff, whom he kept in mind as a reference point in terms of taste, manner and style. This reference point was essentially Classical ... but never too blatant."[2]

In 1948, the family moved to Moscow. Schnittke completed his graduate work in composition at the Moscow Conservatory in 1961 and taught there from 1962 to 1972. Evgeny Golubev was one of his composition teachers. Thereafter, he earned his living chiefly by composing film scores, producing nearly 70 scores in 30 years.[4] Schnittke converted to Christianity and possessed deeply held mystic beliefs, which influenced his music.

Schnittke and his music were often viewed suspiciously by the Soviet bureaucracy. His First Symphony was effectively banned by the Composers' Union. After he abstained from a Composers' Union vote in 1980, he was banned from travelling outside of the USSR. In 1985, Schnittke suffered a stroke that left him in a coma. He was declared clinically dead on several occasions, but recovered and continued to compose.

In 1990, Schnittke left Russia and settled in Hamburg. His health remained poor, however. He suffered several more strokes before his death on August 3, 1998, in Hamburg, at the age of 63. He was buried, with state honors, at the Novodevichy Cemetery in Moscow, where many other prominent Russian composers, including Dmitri Shostakovich, are interred.

in Wikipédia
Bom, parece que o compositor Alfred Schnittke teve um impacto e dimensão no cinema russo, equiparados ao compositor Jerry Goldsmith nos filmes americanos de Hollywood. Mas o estilo musical é outro. Eu só sei que uma banda sonora composta por ele é realmente um luxo neste filme, e faço questão que oiçam e vejam este tema que ele compôs para o filme que estou a discutir:

Tema principal - cliquem para abrir o video no You Tube
Aconselho o seguinte vídeo, com um pianista russo a tocar um tema do compositor, com quem eu falei em privado (quando o You Tube tinha mensagens privadas) e ele ficou todo contente por eu partilhar o vídeo dele no nosso fórum português.

Samwise
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by Samwise »

JoséMiguel wrote: November 27th, 2017, 9:21 pm
Talvez um comentário que me pareça oportuno escrever acerca de realizadoras mulheres, é que o sistema de Hollywood parece-me ser uma monarquia absoluta, em que o Michael Douglas é actor, por motivos monárquicos, apenas por ser filho do Kirk Douglas e a mulher-realizadora Sophia Coppola é realizadora apenas por ser filha do Francis Ford Coppola... o resultado é o filme "Marie Antoinette", que consiste numa vandalização histórica, em que a realizadora americana mete os nobres franceses a dançar música tecnho ou Hip Hop numa discoteca.

Sofia Coppola, exemplo do sistema monárquico (Feudalismo) no Cinema norte-americano.

Pelo que eu li no wikipédia, esta Larisa Shepitko não tinha nenhuma cunha, nem era filha ou sobrinha de nenhum personagem do Soviete Supremo, apenas conseguiu ingressar no curso de Cinema, e os professores gostaram do trabalho dela.

Pelo que me parece, o curso universitário de Cinema na URSS era semelhante ao curso de Medicina em Portugal, ambos com numerus clausus , definidos pelo Estado (Ministério) e pelas autoridades competentes. O difícil era entrar no curso (Medicina em Portugal ou Cinema na URSS), tirando o canudo havia sempre emprego à espera, que no caso soviético incluía todas as funções de Cinema, desde operador de câmera, técnico de iluminação, actor ou até mesmo costureiro ou apenas figurante. Este modelo soviético de cinema era semelhante à composição interna de uma orquestra musical sinfónica, em que todos os membros tiraram o mesmo curso e até foram colegas na faculdade, mas só um pode ser maestro (ou realizador) e iam alternando as funções entre eles. Eu já topei no wikipedia, que em cada página de um realizador soviético, surgem as funções dele como actor, operador de câmera, figurante, costureiro e afins.

O que escrevo no parágrafo anterior é muito pertinente para o tópico "Cinema de Leste", pelo que se calhar também devia incluir isto por lá...
Este comentários são dos mais disparatados, ilógicos e injustos que já te vi escrever aqui no fórum, por uma série de razões (e confusões). Estou sem grande tempo agora, mas logo mais para a noite comento. Fico um pouco triste que tenham de marcar presença numa mensagem que é um tributo (poético) a uma realizadora desaparecida.
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by Samwise »

José Miguel, vou então fazer a defesa daquilo que acho disparatado, ilógico e injusto nas tuas observações sobre as "realizadoras mulheres" , "o sistema de Hollywood", e a "monarquia (feudalista) absoluta que por lá se pratica".

Não vejo, em primeiro lugar, ligação alguma entre as "realizadoras mulheres" e o sistema de "cunhas" a que aludes. Nem eu, nem tu, porque aos falares de mulheres realizadoras começas por dar o exemplo do Michael Douglas. :-))) (mas esta dou de barato, pois entusiasmaste-te com a denúncia da hipótese de cunha e foste direito ao primeiro exemplo que veio à memória). Tanto quanto é do meu conhecimento, nem ele nasceu menina, nem mudou de sexo entretanto, nem se dedicou à carreira no cinema sentado na cadeira atrás das câmaras (embora seja volta e meia produtor). Na outra vertente, é possível que tenha beneficiado de facto de ter tido um pai que é uma lenda no meio, e que isso lhe tenha aberto algumas portas ao longo da vida, mas nada mais natural - não entendo o que isso possa ter de errado, nem que culpa lhe possa ser imputada por ter nascido naquela família, notando ainda que ele não é um desgraçadinho qualquer sem jeito para o ofício que o pai meteu à força nas produções em que tinha influência, antes pelo contrário. Se se tratasse apenas de uma questão de cunha, nunca teria tido o sucesso e o reconhecimento que tem por esta altura.

Em relação à Sophia, a coisa vai um pouco pelo mesmo caminho. Parece-me ser a ordem natural das coisas, num modelo político-económico que o permita, que um modesto mas prestigiado negócio familiar (tipo, a American Zoetrope) queira manter a gestão da empresa na família, e que tente empregar os herdeiros dos sócios/administradores para os mesmo cargos e funções que os pais já ocupavam - tendo, claro, em atenção se tais herdeiros manifestam aptidão e vontade para o negócio. Será censurável ou moralmente condenável o desejo de passar um negócio de pais para filhos? E a ideia de apoiar os filhos em tudo aquilo de que necessitarem? (quem é o pai que não faz isso por um filho?). Tal como o menino Michael, a menina Sophia não tem culpa de ter nascido no seio de uma familía em que o patriarca era um génio artístico com um punhado de obras de cinema de referência, veneradas em qualquer parte do mundo. Não tem culpa também de ter à sua disposição os meios para seguir as pisadas do pai, nem de ter sido educada desde muito cedo a participar activamente no output artístico familiar (era ela o bebé baptizado no final de O Padrinho... começou mesmo quando ainda usava fraldas). Não tem culpa de nascer num país onde a liberdade artística é total, e onde pode fazer o que bem lhe apetece com ou sem curso de cinema, desde que tenha os meios, ou desde que alguém acredite na visão dela e lhe coloque os meios à disposição. Não tem ainda culpa que a sua colega de profissão Larisa Shepitko tenha nascido e vivido num país e num regime em que só havia uma escola univesitária de cinema em todo o território, em que para alguém poder ser realizador tinha de se graduar nessa escola, e em que toda a produção no meio era estritamente controlada e supervisionada pelo estado, havendo um regime de censura bem mais gravoso do que o Production Code nos EUA (essa "monarquia feudalista"...), mesmo depois do Staline ter batido a bota. A Larisa Shepitko, como indica no artigo da wiki sobre o Ascent, sofreu na pele essa censura, tendo-lhe sido apagadas partes do filme anterior, processo que a desgastou e esgotou psicologicamente. Curiosamente, e infelizmente, quem teve de "meter uma cunha" para o filme poder andar para a frente foi mesmo a Larissa, e em duas partes distintas do longo processo de aceitação do Ascent pelo estado, uma no argumento, e outra quando já estava filmado e já havia um rough cut (está no artigo).

Não percebi pois a lógica de chamar monarquia feudalista a Hollywood quando o sistema "equivalente" na URSS à época (da Larisa e do pai Coppola) era bem mais monárquico e ditatorial. Para um jovem que quisesse ser realizador/actor/técnico de cinema, etc, filho de pais ricos ou de pais pobres (na verdade, não havia muitos ricos na URSS - eram os dos cargos altos no partido e pouco mais), teria sempre muito mais hipóteses e liberdade na América. Na URSS entravam 200 por ano para essa escola, e se 10 chegassem a realizadores era uma grande leva. Nota que eu não critico a universidade e os cursos em si (pois não sei nada sobre os mesmos), mas critico a ideia de chamar monarquia feudalista ao sistema americano e depois apresentar o soviético como uma espécie de modelo de virtudes, equiparado pela questão dos numerus clausus ao curso de medicina em Portugal. Acho disparatado. Acho também disparatado falar em cunhas na América quando na URSS era a mesma coisa - a cunha não é obviamente um exclusivo do modelo capitalista. Acho ainda que é errado traçar um diagnóstico avaliativo a todo um sistema de produção de filmes a partir a ideia hipotética de que dois dos seus elementos (de entre milhões) conseguiram vingar por causa de "cunhas". :-)))

Dizes que ela, Sophia, é realizadora apenas por ser filha do Francis Ford Coppola, mas na verdade não sabes se é assim, e não tens como provar. (e a Katherine Bigelow? será que também é realizadora por ser filha de alguém com nome e meios no sistema?) Bem mais importante do que meditar sobre essa teoria, o que se sabe por ser factual é que ela é julgada na praça pública pela qualidade dos seus trabalhos - cabendo-lhe neste caso o mérito por inteiro. Ninguém aparentemente gostou da prestação dela como atriz no Padrinho III e ela não insistiu. Como realizadora, creio que o reconhecimento mundial de pares, críticos e público não tem grande contestação. E aqui o pai não entra.

Afirmas depois que «o resultado (da "cunha", por suposto) é o filme "Marie Antoinette", que consiste numa vandalização histórica, em que a realizadora americana mete os nobres franceses a dançar música tecnho ou Hip Hop numa discoteca.» O "resultado" não se resume nem se esgota nesse filme, como sabes. Essa foi apenas sua quarta obra atrás das câmaras (obras para as quais também escreveu o argumento), sendo que por essa altura já a sua reputação estava bem firmada no meio. Penso que a lista de prémios internacionais tem uma palavra a dizer sobre o reconhecimento que tem.

A propósito da "vandalização histórica" e sobre o Hip Hop na corte francesa da época, houve uma razão deliberada para essa escolha que não me parece totalmente descabida (está na wiki, pelas palavras da própria Sophia), para além de que tens aí um exemplo bem claro e objectivo de um filme made in Hollywood que sai totalmente fora da fórmula habitual (uma das tuas queixas recorrentes :-))) ).

Em jeito de resumo, não sei por que consideraste "oportuno" falar destes assuntos num post de tributo à Larissa, e usando como pretexto a questão das "realizadoras mulheres". É que sobre realizadoras mulheres não disseste uma palavra, nem esboçaste uma ideia. Foi bater no Michael, na Sophia, e no sistema americano, que é monarquico e "sustenta-se à custa de cunhas". Tudo para fazer passar a ideia, suponho, de que Larisa lutou e cresceu por força própria (o que é verdade) e que por isso tem mérito e merece o mérito que tem, e de que a Sophia, como "teve a papinha toda feita" e a cunha do pai, no final não tem mérito nenhum e não merece o estatuto que alcançou. (Não teria feito muito mais sentido comparar a Larisa com o próprio Francis? Hmmm?, que é da mesma geração, nasceram inclusivamente no mesmo ano, ele começou a carreira "por baixo", com as mesmas hipótese de sucesso à partida, subiu a pulso, à custa do seu talento, e sofreu grandes reveses pessoais por ter acreditado nos seus projectos (foi à falência para poder financiar o Apocalypse Now***), mas se calhar esta comparação não permitia o "argumento" de haver um sistema viciado de cunhas e uma monarquia instalada em Hollywood...) .Enfim, não entendi (por que razão é necessário denegrir uns para enaltercer outros - não era necessário), e do pouco que entendi achei disparatado. #-)

(Não vi o Marie Antionette, mas já ganhei vontade suficiente para o espreitar com alguma atenção. Vi o Ascent já há uns 3 ou 4 anos e gostei bastante, mas ainda assim acho que não estava, nem estou, preparado para perceber tudo o que o filme pretende transmitir, para além de que a componente contextual social da época, do local, e dos acontecimentos proposta impede por si só uma boa parte dessa hipótese)

*** - na verdade não foi o Apocalypse Now, foi o filme seguinte, o One from the Heart...
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by JoséMiguel »

Comentário preliminar ao bom texto do Samwise

No conceito sócio-político do Star Trek, de Gene Rodenberry (Será uma Utopia para alguns, um pesadelo para os malandros e um sonho para a gente decente do povo), não existe dinheiro e só trabalha quem quer, como hobby. Isto está previsto como uma possibilidade natural e provável para a Humanidade, caso as elites não engendrem nenhum esquema sinistro para manter o seu actual poder hereditário feudal/monárquico sobre o povo, em que os ricos são ricos por herança e os pobres (por exemplo uma família de uma aldeia da Etiópia, a morrer à fome) são pobres por herança.

A isto chama-se "Post-Scarcity Economy" e temos aqui estes dois artigos sobre o tema:

http://technocracy.wikia.com/wiki/Post_scarcity
https://en.wikipedia.org/wiki/Post-scarcity_economy
Even without postulating new technologies, it is conceivable that already there exists enough energy, raw materials and biological resources to provide a comfortable lifestyle for every person on Earth. However even a hypothetical political or economic system able to achieve an egalitarian distribution of goods would generally not be termed a "post-scarcity society" unless the production of goods was sufficiently automated that virtually no labour was required by anyone. (It is usually assumed there would still be plenty of voluntary creative labour, such as a writer creating a novel or a software engineer working on open-source software.)
O Samwise por um lado é um comentador fenomenal, extremamente inteligente e possuidor de uma vasta cultura, e por outro lado gosta de pedir esclarecimentos/satisfações e desafiar o que eu escrevo. Já há anos que eu digo que ele "é tramado" (um elogio meu) por estas razões.

Eu gosto muito de debater com o Samwise, mas não tenho muita energia para o esforço e desgaste envolvidos. O meu objectivo aqui é apenas que o Samwise perceba o meu ponto de vista, visto ser impossível que ele concorde comigo devido a profundas divergências ideológicas entre nós. Isto não se trata de nenhum debate na praça pública em que alguém ganhe ou perde, ou que alguém tenha mais razão ou mais votos de popularidade do que o outro.

Vou fazer agora uma analogia entre o Cinema, a Ciência, as Artes e os Hobbies, sendo que acerca do Cinema (modelo soviético vs. modelo fascista vs. modelo capitalista, explicarei as diferenças entre Cinema Nacionalizado do Estado (Espanha e União Soviética) no fascismo ou no comunismo vs. Cinema Capitalista "Democrático" mais tarde, talvez noutra mensagem. Eu se calhar prefiro Cinema/TV nacionalizados, seja uma ditadura fascista como Espanha ou Comunista como a URSS, ou ainda como uma democracia pós adesão à CEE, como o caso espanhol, mas com uma TVE nacionalizada, do que o conceito norte-americano de Cinema... mas isso será um longo debate.

Começo pela Ciência. Quando eu era um jovem de 18/19 anos, a minha "cunhada" de então, que estudava Direito, emprestou-me um livro de letras que continha as biografias pessoais dos grandes cientistas do Renascimento, como Isaac Newton e Galileu, que eu li avidamente e que me marcou, e que eu nunca esqueci até hoje. Na altura eu frequentava um curso universitário de Física e sabia de cor todas as leis, teorias e equações matemáticas dos senhores desse livro, mas essa informação biográfica e pessoal sobre eles, era apenas falada num curso da Faculdade de Letras, onde quase todos os alunos tinham fugido à Física e Matemática no 9º ano de escolaridade, enquanto que no IST, uma faculdade de área científica, era chapéu!

Então isto foi assim:

Na 2ª Golden Age Científica (a primeira foi durante o domínio grego da província grega do Egipto), entre o final da Idade das Trevas e o início do século XX, os pobres não tinham acesso à escola, nos casos portugueses e espanhóis este período alarga-se até 1975 e 1974, respectivamente, em que apenas interessavam ao Franco e Salazar que o povo Ibérico soubesse escrever e fazer pequenas contas de matemáticas, para trabalhar numa padaria a vender papo-secos, mais formação escolar que isso era considerada perigosa e subversiva, para os ditadores dos dois regimes ibéricos.

Os grandes avanços científicos, entre 1600-1900, foram feitos a conta-gotas por raros membros da pequena elite de nobres e burgueses ricos, que tinha acesso a formação escolar em condições, visto que a grande massa da população estava a plantar hortaliças no campo, entre esses camponeses analfabetos estiveram mentes brilhantes ao nível de Albert Einstein, que nunca tiveram oportunidade de ir à escola e de contribuir para a ciência. Pelo que eu subentendo da ideologia pessoal do Samwise, ele defende este princípio do direito à herança da riqueza (No tópico da política, o Samwise criticou este ponto do antigo/original manifesto do Partido Comunista Português, dos anos 70, que propunha abolir o direito à herança. Eu pessoalmente sou a favor da distribuição igual da riqueza entre todos, seja qual a sua nacionalidade, o que não é compatível com heranças pessoais. Mas eu não gosto de política nem de partidos políticos, que considero primitivos.), em que apenas os ricos podiam ir à escola no século XVII, pelo direito jurídico à herança e proibição ideológica de re-distribuição de riqueza. Pela ordem de ideias do Samwise, ele acharia bem que se o Albert Einstein tivesse nascido 200 anos antes, seria melhor que ele ficasse a plantar batatas no campo, do que ir à escola ou ter acesso a livros, para manter o status quo das elites vs. o povo e iniquidade de distribuição de riqueza.

No caso do Sir Isaac Newton e afins, esses homens eram ricos que podiam fazer o que queriam e não precisavam de trabalhar, na época só a elite dos ricos o podia fazer, mas a partir do século XX, já muita gente do povo como o Albert Einstein podia (mas em Portugal não, porque um filho de camponês do Minho, nem ir à escola podia).

Estes grandes cientistas da classe privilegiada, como o Newton, são homens por quem eu tenho uma profunda admiração pelas descobertas que eles fizeram. Eles não precisavam de fazer nada, trabalhar ou ganhar a vida, e apenas escolhiam hobbies e entretens, como coleccionar selos, caçar borboletas, ir aos bordéis, beber copos, viajar, etc. Eles já estavam a viver a Utopia do Star Trek, a única diferença é que a Utopia era só para eles.

Na Ciência, este problema já está resolvido (mas na geração dos meus pais em Portugal, ainda não estava), porque qualquer menino português da minha idade que fosse bom em ciências, era logo notado pelos professores e conheci bastante gente pobre da província que recebia bolsa de estudo e residência universitária paga pelo estado português, para estudar em Lisboa no IST e Faculdade de Ciências (para lisboetas como eu, isto era uma não-questão, pois bastava apanhar o autocarro 16 para o IST ou o 68 para o ISEL, mas para gente pobre da província era preciso subsídio para poderem vir morar para uma residência em Lisboa).

Agora mudando de assunto da Ciência para outras áreas, temos os grandes exemplos de voluntariado/hobby nos contribuidores do Wikipedia, sem fins lucrativos, bem como o exemplo de todos os membros do Fórum DVD Mania, em que contribuímos para comentário, apresentação, divulgação e análise de Cinema, sem ninguém nos pagar, isto é uma conquista recente da Humanidade, pois ainda há poucas décadas atrás, para vermos um comentador de Cinema na RTP ou o lermos no Jornal, tínhamos de pagar dinheiro, o que estava errado (e ainda está errado em certos jornais portugueses, que limitam o acesso gratuito às críticas de Cinema (eu protestei naquele tópico em que discuti críticas profissionais portuguesas de Cinema, com o Samwise), bem como na taxa audiovisual da RTP). Também aqui existe um fosso de discordância entre mim e o Samwise, pois ele defende que os críticos "profissionais" de Cinema devem ser pagos pelo Jornal, e este pago pelos leitores, ao passo que eu sou ideologicamente contra essa "macacada primitiva do tempo das cavernas". E digo mais! Antigamente existia a Enciclopedia Encarta da Microsoft que foi descontinuada devido ao Wikipédia gratuito, feito pelo povo, pelo que "acabou-se o arroz doce" para os chulos das enciclopédias comerciais, que extorquiam dinheiro ao povo, por um recurso que devia ser gratuito e património da Humanidade, como finalmente já é.

Finalmente, entrando no modelo actual de Cinema, fazendo uma caricatura, eu e o Samwise parecemos o Doutor Moriarty contra o Sherlock Holmes, não no sentido moral do bem contra o mal ou da justiça versus o crime, mas enquanto dois comentadores que estão ao nível um do outro (ou que estão dispostos a ter paciência para troca de ideias), cada qual com diferentes ideologias e critérios pessoais, não compatíveis. :roll: :lol: Mas também não é necessário termos ideologias compatíveis para uma boa troca de ideias, e se calhar se determinado filme suscita troca acesa de ideias contraditórias, se calhar é sinal de que estamos perante um bom filme, que o resto dos leitores ficarão curiosos em espreitar, só naquela do nosso debate os deixarem intrigados.

Então isto é assim:

No extinto modelo "pseudo-comunista" soviético, que eu considero uma ditadura das elites, mascarada de comunismo, ao menos tentaram em parte, fazer pelo Cinema, o que aconteceu de facto à Ciência no século XX, ou seja dar aos pobres a possibilidade de serem realizadores de Cinema, tal como foi dada oportunidade ao Albert Einstein de ser cientista. Eu considero o modelo actual de Cinema (em todos os países, até na actual Rússia que é capitalista) uma pouca vergonha do Feudalismo/Monarquia em que não é dada aos pobres a possibilidade de serem realizadores. Em retrospectiva, eu acho que o colapso da URSS em Dezembro de 1991 foi uma facada muito profunda no Cinema mundial, com o fim do (Grande) Cinema financiado pelo Governo. Recordo que a esmagadora parte dos realizadores do bloco de leste eram subversivos contra o governo e gozavam de uma imensa liberdade artística e criativa, quase impossível no cinema norte-americano (devido ao modelo capitalista de maximização de lucros que proíbe inovação que fuja à "Fórmula"). No Cinema norte-americano surgiram alguns Isaac Newtons, que por amor ao Cinema pagaram do seu bolso filmes inovadores, como o Stanley Kubrick e Stanley Kramer, o problema aqui é que eram os tais nobres das elites, que herdaram muito dinheiro para se dedicarem aos seus hobbies, pois se fossem pobres não teriam hipótese de serem realizadores de Cinema, tal como o camponês europeu de 1700, que por ser filho de pobres não podia ir à escola e tinha de ficar a cavar batatas. Mas o modelo soviético de Cinema (com muita corrupção incluída) tentou dar aos pobres a possibilidade de serem realizadores, como esta Larisa Shepitko, da mesma forma que um homem do povo como o Albert Einstein teve a hipótese de ser cientista, em vez de cavar batatas, ou de pastar ovelhas e cabras, caso tivesse nascido em Portugal, por exemplo na aldeia dos Pastorinhos, perto de Fátima.

Esta pouca vergonha do modelo actual mundial de cinema (conceito capitalista norte-americano) vai acabar em breve, nos próximos 50 anos. Por exemplo a Paramount lançou uma queixa-crime contra os cineastas amadores que estavam a fazer um filme "fan-made" do Star Trek, há uma porrada e catrefada de produções fan-made do Star Trek no You Tube, cheios de medo que a Paramount lhes ponha em tribunal... Mas eu interrogo-me do porquês desses fãs (cineastas e equipa) todos, não criarem conteúdo novo e original, sem nenhum plágio ao Star Trek, e que seja apenas sci-fi inteligente, "thought-provoking" e de acordo com a visão positiva do Futuro de uma economia "Post-Scarcity"? Por exemplo a série comercial "Babylon 5" não plagia o Star Trek, porque não esses fãs criarem uma série de sci-fi de domínio público, que seja original sem plágio? Quando o fizerem irá haver uma grande revolução televisiva de ficção científica. Eu sonho com uma Utopia sem dinheiro, em que todo o Cinema e Televisão seja criado por artistas voluntários, sem fins lucrativos, em que já não seja preciso uma ditadura soviética ou uma "monarquia hereditária" americana (em que só os ricos podem ser realizadores-produtores), já por volta de 1800, o conde polaco Jan Potocki escreveu o grande livro "O Manuscrito encontrado em Saragoça", apenas em regime de voluntariado, tal como na Utopia do Star Trek, em que ele era tão rico que não trabalhava e apenas gostava de passear pelo estrangeiro e escrever livros.

A propósito, uma das razões que ma fazem gostar tanto de adaptações de Cinema fiéis a grandes obras literárias do século XIX, é precisamente pelos seus autores escreverem com liberdade criativa, sem nenhuma ganância de maximizar lucros. Até mesmo os escritores ingleses que eram "funcionários pagos" a ganhar a vida com as suas histórias, como os grandes Charles Dickens, H.G. Wells e Bram Stocker, tinham todos liberdade criativa, sem nenhum psicopata doente, produtor de Hollywood, andar a obrigá-los a usar a fórmula estúpida repetitiva, para idiotas, do Cinema de Hollywood.
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by Samwise »

8) Agradeço a tua paciência e tempo a responder e vou ler com atenção para poder continuar este debate (eu também sofro do desgaste que identificas, mas o gosto pela troca de opiniões e posições acaba por prevalecer).

Como te tinha dito há uns tempos, no nosso caso, a coisa só vai lá com um café. Daqueles que se começam a beber ao final do almoço e se terminam ao princípio do jantar. :-))) (servem de digestivo e aperitivo ao mesmo tempo)
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by JoséMiguel »

Eu escrevi o meu "comentário preliminar" já muito ensonado na 5ª feira à noite, e logo a seguir não achei bem o que escrevi, pois escrevi sem pensar e tencionava mover o texto para uma mensagem privada para o Sam, ao mesmo tempo em que escreveria algo mais sucinto em lugar do meu testamento. Sinto que fiz uma confusão (pessoal) entre vários temas que ficariam melhor em tópicos mais adequados, e escritos de outra forma. Não liguem muito a essa confusão de pensamentos que escrevi, pois foi mal raciocinada e exposta.

Como estive 5 dias "sem acesso à net", não pude vir aqui antes.
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Re: Восхождение / The Ascent (1977) - Larisa Shepitko

Post by Samwise »

Devido à extensão dos assuntos abordados, devido também à minha necessidade de diversificar o foco da atenção durante os meus tempos disponíveis, e ainda para não fazer o José Miguel esperar uma eternidade por uma resposta, vou dividir os meus comentários em parcelas, que irei colocando ao longo do tempo.
JoséMiguel wrote: December 1st, 2017, 4:43 am Comentário preliminar ao bom texto do Samwise

No conceito sócio-político do Star Trek, de Gene Rodenberry (Será uma Utopia para alguns, um pesadelo para os malandros e um sonho para a gente decente do povo), não existe dinheiro e só trabalha quem quer, como hobby. Isto está previsto como uma possibilidade natural e provável para a Humanidade, caso as elites não engendrem nenhum esquema sinistro para manter o seu actual poder hereditário feudal/monárquico sobre o povo, em que os ricos são ricos por herança e os pobres (por exemplo uma família de uma aldeia da Etiópia, a morrer à fome) são pobres por herança.

A isto chama-se "Post-Scarcity Economy" e temos aqui estes dois artigos sobre o tema:

http://technocracy.wikia.com/wiki/Post_scarcity
https://en.wikipedia.org/wiki/Post-scarcity_economy
Even without postulating new technologies, it is conceivable that already there exists enough energy, raw materials and biological resources to provide a comfortable lifestyle for every person on Earth. However even a hypothetical political or economic system able to achieve an egalitarian distribution of goods would generally not be termed a "post-scarcity society" unless the production of goods was sufficiently automated that virtually no labour was required by anyone. (It is usually assumed there would still be plenty of voluntary creative labour, such as a writer creating a novel or a software engineer working on open-source software.)
Estou familiarizado com o conceito de Post-Scarcity Economy e partilho do teu desejo chegar um dia a um estado civilizacional que permita a sua prevalência em todos os cantos do mundo habitado. Até lá, e uma vez que não sabemos quando vai chegar nem a que preço (as tais elites que mencionas são o seu maior obstáculo), prefiro olhar e julgar a realidade de acordo com aquilo que podemos ter, e depois fazer as escolhas por aí. Significa isto que entre um extremo de "liberalismo total" (regulação estatal próxima do zero, que permite o máximo de liberdade mas potencia grandes assimetrias na distribuição da riqueza e na propriedade dos recursos) e o outro extremo de "comunismo total" (intervenção estatal próxima (*) dos 100% na actividade económica, que impõe tudo aos cidadãos retirando-lhes qualquer ideia de liberdade, e que divide no final o fruto da produção de forma equitativa por todos), eu gosto mesmo é de um meio termo - algo até bastante próximo daquilo que temos em Portugal, embora fosse bom sermos culturalmente mais "refinados" e "apurados" (há muita corrupção, muitos vigaristas, muitos chicos-espertos a aproveitarem-se de situações de poder, infelizmente). Um sistema de economia de mercado que permita a livre iniciativa, mas regulado e intervencionado o suficiente para limar as assimetrias, isto é, para reduzir o fosso entre os mais abastados e os menos, pelo menos a ponto de os retirar da pobreza e para fazer equilibrar um pouco mais a balança das oportunidades. Não sei como se chega a um sistema destes no seu ponto óptimo, mais para a direita ou mais para a esquerda nos seus mais diversos mecanismos e vertentes, mas creio que na história de Portugal, e de uma quantidade enorme de outras nações, já estivemos muito mais longe e em muito piores condições sociais.

Isto porque não podemos ter 100% de liberdade e 100% de igualdade ao mesmo tempo. Os ideais da Revolução Francesa eram nobres, mas inatingíveis, pelo menos em simultâneo - e quanto à "fraternidade", todos sabemos que está bem longe de chegar para todas as encomendas. Podendo optar (e só posso optar porque vivo num país democrático - se quiser mesmo sair e optar por viver noutro lado sou livre de o fazer), e não podendo ter 100% das duas coisas em simultâneo, prefiro um misto, para poder ter pelo menos um pouco de cada uma (em vez de 100% de uma e zero da outra), num sistema que se vá ajustando e reajustando conforme aquilo que maioria decidir.

Sou totalmente a favor da ideia de propriedade privada, quer dos meios de produção, quer do produto dessa produção (seja para quem detém o capital e gere um negócio, seja para quem recebe um salário por trabalhar nesse negócio), o que significa, por consequência, que sou a favor de um sistema que proteja a ideia de herança, e de transmissão de riqueza através da gerações. Uma pessoa deve poder usufruir da riqueza que gerou através do seu trabalho da forma que bem entender, incluíndo passá-la aos seus herdeiros se for a sua intenção. Mas, em paralelo, concordo também que a geração dessa riqueza deva ser taxada de forma progressiva (quanto mais elevada, maior o imposto), que as regras dessa taxação sejam conhecidas à partida, e que haja um mínimo de condições para assegurar alguma continuidade e estabilidade nessas regras.

A ideia de ter um estado a ficar com tudo o que é meu, e/ou com tudo o que crio através do meu trabalho, para decidir depois por ele (estado) a quem vai entregar a riqueza na ideia de poder vir a beneficiar a todos por igual é ao mesmo tempo "wishfull thinking" e uma aberração com inúmeros (demasiados) casos desastrosos e determinantes na nossa história recente. Todas as boas intenções que essa noção poderia ter tido em tempos no papel cairam por terra, e de forma bastante trágica para milhões de pessoas em inúmeros países, quando depois foram tentadas na prática. Para além de todos os atropelos aos mais básicos princípios e direitos humanos, tal sistema acabou não só por não enriquecer nem "libertar" ninguém (do sistema de exploração do proletariado pelo capital), mas por empobrecer de uma forma generalizada toda a população.

E por hoje fico-me por aqui, com a ressalva, regressando um pouco ao início, de que também gostaria de viver numa civilização em estado de post-scarcity (quem não goastaria?) - com todas as necessidades básicas asseguradas para toda a raça humana. Seria mesmo muito bom. Para já é um sonho muito longínquo.

(*) "próxima" dos 100%, porque "100% de comunismo" significaria que o aparelhos burocrático/institucional estatal deixaria de existir, por já não ser necessário, e que a sociedade se autoregularia apenas pelas iniciativas organizadas e acções da população (um estádio de existência que também é o objectivo final dos anarquistas), algo que nunca sucedeu na prática. A utopia Marxista é mesmo esta.
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