Comentário preliminar ao bom texto do Samwise
No conceito sócio-político do Star Trek, de Gene Rodenberry (Será uma Utopia para alguns, um pesadelo para os malandros e um sonho para a gente decente do povo), não existe dinheiro e só trabalha quem quer, como hobby. Isto está previsto como uma possibilidade natural e provável para a Humanidade, caso as elites não engendrem nenhum esquema sinistro para manter o seu actual poder hereditário feudal/monárquico sobre o povo, em que os ricos são ricos por herança e os pobres (por exemplo uma família de uma aldeia da Etiópia, a morrer à fome) são pobres por herança.
A isto chama-se "Post-Scarcity Economy" e temos aqui estes dois artigos sobre o tema:
http://technocracy.wikia.com/wiki/Post_scarcity
https://en.wikipedia.org/wiki/Post-scarcity_economy
Even without postulating new technologies, it is conceivable that already there exists enough energy, raw materials and biological resources to provide a comfortable lifestyle for every person on Earth. However even a hypothetical political or economic system able to achieve an egalitarian distribution of goods would generally not be termed a "post-scarcity society" unless the production of goods was sufficiently automated that virtually no labour was required by anyone. (It is usually assumed there would still be plenty of voluntary creative labour, such as a writer creating a novel or a software engineer working on open-source software.)
O Samwise por um lado é um comentador fenomenal, extremamente inteligente e possuidor de uma vasta cultura, e por outro lado gosta de pedir esclarecimentos/satisfações e desafiar o que eu escrevo. Já há anos que eu digo que ele "é tramado" (um elogio meu) por estas razões.
Eu gosto muito de debater com o Samwise, mas não tenho muita energia para o esforço e desgaste envolvidos. O meu objectivo aqui é apenas que o Samwise perceba o meu ponto de vista, visto ser impossível que ele concorde comigo devido a profundas divergências ideológicas entre nós. Isto não se trata de nenhum debate na praça pública em que alguém ganhe ou perde, ou que alguém tenha mais razão ou mais votos de popularidade do que o outro.
Vou fazer agora uma analogia entre o Cinema, a Ciência, as Artes e os Hobbies, sendo que acerca do Cinema (modelo soviético vs. modelo fascista vs. modelo capitalista, explicarei as diferenças entre Cinema Nacionalizado do Estado (Espanha e União Soviética) no fascismo ou no comunismo vs. Cinema Capitalista "Democrático" mais tarde, talvez noutra mensagem. Eu se calhar prefiro Cinema/TV nacionalizados, seja uma ditadura fascista como Espanha ou Comunista como a URSS, ou ainda como uma democracia pós adesão à CEE, como o caso espanhol, mas com uma TVE nacionalizada, do que o conceito norte-americano de Cinema... mas isso será um longo debate.
Começo pela Ciência. Quando eu era um jovem de 18/19 anos, a minha "cunhada" de então, que estudava Direito, emprestou-me um livro de letras que continha as biografias pessoais dos grandes cientistas do Renascimento, como Isaac Newton e Galileu, que eu li avidamente e que me marcou, e que eu nunca esqueci até hoje. Na altura eu frequentava um curso universitário de Física e sabia de cor todas as leis, teorias e equações matemáticas dos senhores desse livro, mas essa informação biográfica e pessoal sobre eles, era apenas falada num curso da Faculdade de Letras, onde quase todos os alunos tinham fugido à Física e Matemática no 9º ano de escolaridade, enquanto que no IST, uma faculdade de área científica, era chapéu!
Então isto foi assim:
Na 2ª Golden Age Científica (a primeira foi durante o domínio grego da província grega do Egipto), entre o final da Idade das Trevas e o início do século XX, os pobres não tinham acesso à escola, nos casos portugueses e espanhóis este período alarga-se até 1975 e 1974, respectivamente, em que apenas interessavam ao Franco e Salazar que o povo Ibérico soubesse escrever e fazer pequenas contas de matemáticas, para trabalhar numa padaria a vender papo-secos, mais formação escolar que isso era considerada perigosa e subversiva, para os ditadores dos dois regimes ibéricos.
Os grandes avanços científicos, entre 1600-1900, foram feitos a conta-gotas por raros membros da pequena elite de nobres e burgueses ricos, que tinha acesso a formação escolar em condições, visto que a grande massa da população estava a plantar hortaliças no campo, entre esses camponeses analfabetos estiveram mentes brilhantes ao nível de Albert Einstein, que nunca tiveram oportunidade de ir à escola e de contribuir para a ciência. Pelo que eu subentendo da ideologia pessoal do Samwise, ele defende este princípio do direito à herança da riqueza (No tópico da política, o Samwise criticou este ponto do antigo/original manifesto do Partido Comunista Português, dos anos 70, que propunha abolir o direito à herança. Eu pessoalmente sou a favor da distribuição igual da riqueza entre todos, seja qual a sua nacionalidade, o que não é compatível com heranças pessoais. Mas eu não gosto de política nem de partidos políticos, que considero primitivos.), em que apenas os ricos podiam ir à escola no século XVII, pelo direito jurídico à herança e proibição ideológica de re-distribuição de riqueza. Pela ordem de ideias do Samwise, ele acharia bem que se o Albert Einstein tivesse nascido 200 anos antes, seria melhor que ele ficasse a plantar batatas no campo, do que ir à escola ou ter acesso a livros, para manter o status quo das elites vs. o povo e iniquidade de distribuição de riqueza.
No caso do Sir Isaac Newton e afins, esses homens eram ricos que podiam fazer o que queriam e não precisavam de trabalhar, na época só a elite dos ricos o podia fazer, mas a partir do século XX, já muita gente do povo como o Albert Einstein podia (mas em Portugal não, porque um filho de camponês do Minho, nem ir à escola podia).
Estes grandes cientistas da classe privilegiada, como o Newton, são homens por quem eu tenho uma profunda admiração pelas descobertas que eles fizeram. Eles não precisavam de fazer nada, trabalhar ou ganhar a vida, e apenas escolhiam hobbies e entretens, como coleccionar selos, caçar borboletas, ir aos bordéis, beber copos, viajar, etc. Eles já estavam a viver a Utopia do Star Trek, a única diferença é que a Utopia era só para eles.
Na Ciência, este problema já está resolvido (mas na geração dos meus pais em Portugal, ainda não estava), porque qualquer menino português da minha idade que fosse bom em ciências, era logo notado pelos professores e conheci bastante gente pobre da província que recebia bolsa de estudo e residência universitária paga pelo estado português, para estudar em Lisboa no IST e Faculdade de Ciências (para lisboetas como eu, isto era uma não-questão, pois bastava apanhar o autocarro 16 para o IST ou o 68 para o ISEL, mas para gente pobre da província era preciso subsídio para poderem vir morar para uma residência em Lisboa).
Agora mudando de assunto da Ciência para outras áreas, temos os grandes exemplos de voluntariado/hobby nos contribuidores do Wikipedia, sem fins lucrativos, bem como o exemplo de todos os membros do Fórum DVD Mania, em que contribuímos para comentário, apresentação, divulgação e análise de Cinema, sem ninguém nos pagar, isto é uma conquista recente da Humanidade, pois ainda há poucas décadas atrás, para vermos um comentador de Cinema na RTP ou o lermos no Jornal, tínhamos de pagar dinheiro, o que estava errado (e ainda está errado em certos jornais portugueses, que limitam o acesso gratuito às críticas de Cinema (eu protestei naquele tópico em que discuti críticas profissionais portuguesas de Cinema, com o Samwise), bem como na taxa audiovisual da RTP). Também aqui existe um fosso de discordância entre mim e o Samwise, pois ele defende que os críticos "profissionais" de Cinema devem ser pagos pelo Jornal, e este pago pelos leitores, ao passo que eu sou ideologicamente contra essa "macacada primitiva do tempo das cavernas". E digo mais! Antigamente existia a Enciclopedia Encarta da Microsoft que foi descontinuada devido ao Wikipédia gratuito, feito pelo povo, pelo que "acabou-se o arroz doce" para os chulos das enciclopédias comerciais, que extorquiam dinheiro ao povo, por um recurso que devia ser gratuito e património da Humanidade, como finalmente já é.
Finalmente, entrando no modelo actual de Cinema, fazendo uma caricatura, eu e o Samwise parecemos o Doutor Moriarty contra o Sherlock Holmes, não no sentido moral do bem contra o mal ou da justiça versus o crime, mas enquanto dois comentadores que estão ao nível um do outro (ou que estão dispostos a ter paciência para troca de ideias), cada qual com diferentes ideologias e critérios pessoais, não compatíveis.
Mas também não é necessário termos ideologias compatíveis para uma boa troca de ideias, e se calhar se determinado filme suscita troca acesa de ideias contraditórias, se calhar é sinal de que estamos perante um bom filme, que o resto dos leitores ficarão curiosos em espreitar, só naquela do nosso debate os deixarem intrigados.
Então isto é assim:
No extinto modelo "pseudo-comunista" soviético, que eu considero uma ditadura das elites, mascarada de comunismo, ao menos tentaram em parte, fazer pelo Cinema, o que aconteceu de facto à Ciência no século XX, ou seja dar aos pobres a possibilidade de serem realizadores de Cinema, tal como foi dada oportunidade ao Albert Einstein de ser cientista. Eu considero o modelo actual de Cinema (em todos os países, até na actual Rússia que é capitalista) uma pouca vergonha do Feudalismo/Monarquia em que não é dada aos pobres a possibilidade de serem realizadores. Em retrospectiva, eu acho que o colapso da URSS em Dezembro de 1991 foi uma facada muito profunda no Cinema mundial, com o fim do (Grande) Cinema financiado pelo Governo. Recordo que a esmagadora parte dos realizadores do bloco de leste eram subversivos contra o governo e gozavam de uma imensa liberdade artística e criativa, quase impossível no cinema norte-americano (devido ao modelo capitalista de maximização de lucros que proíbe inovação que fuja à "Fórmula"). No Cinema norte-americano surgiram alguns Isaac Newtons, que por amor ao Cinema pagaram do seu bolso filmes inovadores, como o Stanley Kubrick e Stanley Kramer, o problema aqui é que eram os tais nobres das elites, que herdaram muito dinheiro para se dedicarem aos seus hobbies, pois se fossem pobres não teriam hipótese de serem realizadores de Cinema, tal como o camponês europeu de 1700, que por ser filho de pobres não podia ir à escola e tinha de ficar a cavar batatas. Mas o modelo soviético de Cinema (com muita corrupção incluída) tentou dar aos pobres a possibilidade de serem realizadores, como esta Larisa Shepitko, da mesma forma que um homem do povo como o Albert Einstein teve a hipótese de ser cientista, em vez de cavar batatas, ou de pastar ovelhas e cabras, caso tivesse nascido em Portugal, por exemplo na aldeia dos Pastorinhos, perto de Fátima.
Esta pouca vergonha do modelo actual mundial de cinema (conceito capitalista norte-americano) vai acabar em breve, nos próximos 50 anos. Por exemplo a Paramount lançou uma queixa-crime contra os cineastas amadores que estavam a fazer um filme "fan-made" do Star Trek, há uma porrada e catrefada de produções fan-made do Star Trek no You Tube, cheios de medo que a Paramount lhes ponha em tribunal... Mas eu interrogo-me do porquês desses fãs (cineastas e equipa) todos, não criarem conteúdo novo e original, sem nenhum plágio ao Star Trek, e que seja apenas sci-fi inteligente, "thought-provoking" e de acordo com a visão positiva do Futuro de uma economia "Post-Scarcity"? Por exemplo a série comercial "Babylon 5" não plagia o Star Trek, porque não esses fãs criarem uma série de sci-fi de domínio público, que seja original sem plágio? Quando o fizerem irá haver uma grande revolução televisiva de ficção científica. Eu sonho com uma Utopia sem dinheiro, em que todo o Cinema e Televisão seja criado por artistas voluntários, sem fins lucrativos, em que já não seja preciso uma ditadura soviética ou uma "monarquia hereditária" americana (em que só os ricos podem ser realizadores-produtores), já por volta de 1800, o conde polaco Jan Potocki escreveu o grande livro "O Manuscrito encontrado em Saragoça", apenas em regime de voluntariado, tal como na Utopia do Star Trek, em que ele era tão rico que não trabalhava e apenas gostava de passear pelo estrangeiro e escrever livros.
A propósito, uma das razões que ma fazem gostar tanto de adaptações de Cinema fiéis a grandes obras literárias do século XIX, é precisamente pelos seus autores escreverem com liberdade criativa, sem nenhuma ganância de maximizar lucros. Até mesmo os escritores ingleses que eram "funcionários pagos" a ganhar a vida com as suas histórias, como os grandes Charles Dickens, H.G. Wells e Bram Stocker, tinham todos liberdade criativa, sem nenhum psicopata doente, produtor de Hollywood, andar a obrigá-los a usar a fórmula estúpida repetitiva, para idiotas, do Cinema de Hollywood.