Carnival of Souls (1962) - Herk Harvey

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Pedro Pereira de Carvalho
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Carnival of Souls (1962) - Herk Harvey

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O Circo das Almas - "Carnival of Souls"

Estive recentemente a ver este filme, mais um da editora Unimundos à venda a menos de €2 nas Worten. Contém as versões a preto e branco remasterizada e completa e a versão "colorizada". Desta vez vi ambas as versões já que quis rever o filme após o primeiro visionamento na versão original a p/b.

O argumento pode ser resumido em poucas palavras. Após um acidente de carro do qual emerge como única sobrevivente, uma jovem talento a tocar órgão muda-se para uma pequena cidade do Utah, contratada pela igreja local. A jovem sente-se algo deslocada das pessoas e vê-se perseguida por uma estranha e sinistra personagem que só ela vê. Em simultâneo é atraída por um antigo parque de diversões abandonado no arrebaldes da pequena cidade. Mais não conto para não estragar a história para quem não conhece o filme.

Considerado um filme de culto, compreende-se porquê. Não é propriamente original, uma história semelhante já existia num episódio da série Twilight Zone, e nota-se alguma influência do filme Psycho de Alfred Hitchcock lançado 2 anos antes. Outras influências são os filmes de Val Lewton dos anos 40. No entanto a atmosfera do filme torna-o difícil de esquecer.

Filmado em apenas 3 semanas, com um minúsculo orçamento, uma bobine de filme arruinada por sobre exposição durante o processamento da mesma (que incluía mais algumas cenas do baile final), foi alvo de problemas na distribuição, devido à falência do distribuidor. Tornou-se uma peça algo única, o único filme de entretenimento do realizador e particamente o único filme dos seus actores, depois do falhanço da bilheteira em 1962 quando foi lançado. Graças à passagem na TV ganhou o estatuto de filme de culto e foi relançado com relativo sucesso em 1989, sucesso esse que deu azo não só a esta edição remasterizada e com uma versão "colorizada", como também a um lançamento pela Criterion.
Existe inclusive uma versão 3D, obra de um fã dedicado ( http://2d23dconversions-carnivalofsouls3d.blogspot.pt/ ).
Devido a um erro da altura o filme ficou em Domínio Público e existem versões disponíveis quer no Youtube, quer no Internet Archives - http://archive.org/details/CarnivalofSouls

Entre os realizadores influenciados por este filme contam-se George Romero que roubou elementos para o seu A Noite dos Mortos Vivos, David Lynch (muitos dos seus filmes trazem-nos uma atmosfera semelhante e Mulholland Drive tem muito deste filme). O escritor Stephen King foi também um dos apreciadores deste filme.

Hoje em dia poderá não ser tão apreciado pelos fãs do terror, o ritmo é algo lento e necessita de paciência e disponibilidade por parte do espectador. O efeito surpresa final já foi explorado em muitos filmes actuais.
Também não é um filme de gore, não há sombra de sangue em todo o filme. No entanto quem persistir é recompensado pela estranha atmosfera quase sonho que se vai entranhando no espectador, pautada pela hipnotizante música de órgão que compõe a banda sonora do filme e que acaba mesmo por se tornar intrusiva. Pessoalmente o seu efeito de sonho/realidade fez-me sobretudo lembrar o filme Piquenique em Hanging Rock pelo mesmo tipo de atmosfera.

O ideal seria ter visto este filme ainda jovem, à noite, sozinho em frente de TV na altura em que foi relançado (no seu lançamento seria difícil pois foi lançado antes de eu ter nascido). Penso que se teria tornado impossível de esquecer - e provavelmente dado-me alguns pesadelos!

Apesar de algumas falhas de montagem o que não é de admirar quando foi filmado por uma equipa técnica de apenas 5 pessoas, e falhas notáveis como as cenas da protagonista a tocar órgão onde há uma clara visão da diferença entre a música e o toque nas teclas, algumas cenas são excelentes, a visão do topo da fuga da protagonista pela cidade e, principalmente, as cenas no parque de diversões abandonado com a sua arrepiante desolação e estranheza. Foi de resto a visão deste parque real abandonado em Salt Lake City que deu a ideia do filme ao realizador.

As personagens são estranhas, algo distantes da simpatia do espectador. A protagonista é fria e distante, o tocar na igreja é para ela apenas um trabalho. O progressivo isolamento da protagonista, bem poderia ser esquizofrenia, era necessário um estudante de psicologia para uma análise mais completa. Mesmo o único interesse amoroso, parte de um vizinho da pensão voyeurista e oleoso, com mania de conquistador, assustaria qualquer mulher com um pingo de senso. O facto da protagonista não ter sido elucidada previamente sobre as motivações da personagem ajudou na excelente interpretação da confusão e inquietação que a percorrem ao longo do filme.

A edição em DVD da Filmes Unimundos é espartana, apenas com a escolha entre as duas versões (cor ou preto e branco). Faltam algumas legendas no início do filme (2 ou 3 frases apenas), mas a imagem é boa. Perde-se um pouco o efeito das luzes e sombras na versão a cores, principalmente nas cenas do parque de diversões, mas não se perde a atmosfera do filme, o que não é mau.

Imagens das edições DVD do filme podem ser vistas em http://www.dvdbeaver.com/film/dvdcompar ... fsouls.htm
Pedro Pereira de Carvalho - 56 anos - Lisboa
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Re: Carnival of Souls (1962) - Herk Harvey

Post by Cabeças »

Tenho o filme há anos. Decidamente, tenho que o ver! saint-)

Grato, Pedro. yes-)
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JoséMiguel
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Re: Carnival of Souls (1962) - Herk Harvey

Post by JoséMiguel »

Gostei bastante desta crítica, salut-) e vou ver este filme, graças ao "spoiler". O spoiler é essencial neste caso, pois dá-me vontade de ver o filme, não pelo efeito surpresa, mas pela execução e antecipação de como a peronagem irá reagir quando se aperceber.

Twilight Zone adoro, e já vi tudo, mas não estou a ver nenhum episódio com este tema directo. Existe aquele dos bonecos dentro da lata do vendedor de rua, só estou a ver esse.

Filmes em domínio público são sempre bem vindos, conheço bem o site referido archive.org, mas estive a investigar o You Tube e encontrei a versão 480p (resolução do DVD), vou ver essa e depois logo digo o que achei, fica aqui o link para quem também quiser ver:
Em relação à influência sobre o Night Of The Living Dead, tenho dúvidas, mas estarei atento, pois pode haver alguma técnica ou conceito não presente no Last Man On Earth (esse é mesmo o pai directo dos filmes de apocalipse de zombies, e tenciono fazer uma crítica dele futuramente).
Pedro Pereira de Carvalho
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Re: Carnival of Souls (1962) - Herk Harvey

Post by Pedro Pereira de Carvalho »

Quanto ao Twilight Zone a história a que me refiro é "The Hitch-Hiker", embora com diferenças óbvias. Para quem conheça o episódio isto é logo um spoiler.
Quanto à influência no Romero tens a caracterização dos zombies e a cena do "ataque" dos Zombies no pavilhão que espelha a cena do ataque do cemitério no Night of the Living Dead.
Pedro Pereira de Carvalho - 56 anos - Lisboa
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Re: Carnival of Souls (1962) - Herk Harvey

Post by Pedro Pereira de Carvalho »

Não me senti satisfeito com a minha crítica ao filme, pois há muito para dizer, só que implica desvendar o enredo do filme. Então decidi fazer outra crítica, complementar da primeira mas com spoilers. Fica escondida dentro do tag para quem não conheça o filme.
Comecemos pelo título O Circo das Almas - "Carnival of Souls". A tradução portuguesa está literalmente correcta, mas perde parte do sentido em relação ao original.

Circo ou Circus em inglês refere-se a um evento onde um grupo de profissionais do entretenimento se junta e viajam de local em local para dar espectáculo normalmente numa tenda circular montada ao ar livre. Acrobatas, "duplos" e palhaços fazem parte do elenco e costuma haver também animais treinados. Decorre num período de tempo especificado numa digressão.

Carnival em inglês, corresponde mais ao conceito de feira popular. É também um local de espectáculo, mas em vez de um palco principal onde decorre o espectáculo, existem múltiplos espectáculos a decorrer em simultâneo numa área mais ampla. Além disso é normalmente associado (na América pelo menos) a datas significativas, religiosas, históricas ou culturais, por exemplo em feriados.

Mas Carnival tem também outro significado. O de Carnaval, uma época festiva que antecede a Quarta-feira de Cinzas (o início da Quaresma), apropriada pelo catolicismo de festas pagãs. Há quem defenda a origem da palavra em carner referindo-se ao antigo costume de terminar a carne em stock antes do período da quaresma. Ou do latim carne vale - a despedida da carne. Outros defendem que a palavra provém do nome romano carrus navalis para designar a festa pagã do festival do Navio de Isis, onde a imagem da deusa Isis era carregada para a beira-mar para abençoar o início da época de navegação.
No tempo dos romanos era o período da Saturnália um tempo de folia, onde existia uma figura o Rei Momo, que podia ordenar o que quisesse durante esse período sendo ao fim dos 4 dias sacrificado no altar de Saturno. A figura do Rei Momo foi associada a Satanás no catolicismo e é simbolicamente queimada no final do Carnaval.

Assim o título original faz mais sentido. Além de designar o parque de diversões abandonado no filme, indica também o período de 3 dias onde se faz a despedida da carne (antes do tempo de penitência e oração), e que termina com o sacrifício do Rei Momo.
No filme são precisamente os 3 dias em que Mary Henry (um nome de mulher e homem em simultâneo para designar a humanidade), emerge do rio e até à sua desaparição no parque de diversões abandonado, vítima do baile dos malditos. Será a sua despedida da carne. Satanás - o zombie principal, espreita e aparece durante esses dias até ao sacrifício de Mary.

Mary morre no rio no início do Carnaval, mas não o sabe e a sua força de vontade é tão grande que se julga viva e assim convence os outros. No entanto algo no seu inconsciente sabe a verdade e ela evita visitar os pais e despede-se da cidade onde cresceu dizendo que não voltará nunca mais. No entanto de vez em quando a verdade fala mais alto e é nesses períodos que ela se torna invisível aos olhos dos outros, um período arrepiante em que se sente o silêncio embora no filme predomine a música do órgão para aumentar a tensão. Será o ar livre o parque e o sol que a sacodem desse período morto. Entretanto torna-se cada vez mais isolada um sonho entre os restantes habitantes, ou, como diz ao médico, como se não pertencente a este mundo. Os habitantes da sua nova cidade desconfiam de algo, o próprio doutor diz que ela se quer ir embora e espera que ela consiga. E Satanás o zombie que a persegue incessantemente diverte-se nesse período ao ponto de a fazer tocar músicas pagãs na pequena igreja local.

O vizinho da pensão é um dos que aparece no final erguendo-se das águas que rodeiam o parque de diversões, também ele um morto-vivo que é possuído por Satanás na cena do encontro final entre ambos no quarto da protagonista, quando esta procura desesperadamente uma conexão com o mundo dos vivos, mesmo através de tão vil personagem.

Fé e Ciência debatem-se, o ministro que a acusa de blasfémia e a despede do seu trabalho como organista, o médico que acha que ela está doente, mas será ele também uma encarnação de Satanás ou apenas um sonho no período em que se encontra no carro na oficina? De qualquer modo nenhum a irá conseguir salvar do seu destino.
Pedro Pereira de Carvalho - 56 anos - Lisboa
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Re: Carnival of Souls (1962) - Herk Harvey

Post by JoséMiguel »

Vi o filme ontem.

Quero dar os parabéns ao Pedro, por estas duas excelentes críticas que reli após ver o filme, e que sinceramente eu não teria capacidade para as escrever.

Basicamente, concordo com tudo o que o Pedro escreveu.

Apercebi-me da referida influência cinematográfica (não no tema da história) que teve no Night of The Living Dead do Romero.

Quando eu tinha 7 anos teria adorado este filme, mas agora vi-o apenas por curiosidade.

Este filme é muito desequilibrado, porque é ao mesmo tempo péssimo, a nível técnico e cinematográfico, "feito às três pancadas", mas depois contém conceitos originais e interessantes a nível visual e da execução da história. O argumento é bom.

Se são fãs do Twilight Zone original, de temas do fantástico e possuirem uma grande tolerância e boa vontade para aguentar um filme série B muito antigo, com os problemas que lhe advêm, então deêm uma espreitadela... só por curiosidade...

Pelo menos não é o típico filme de "fórmula cliché".

O diálogo de que mais gostei, foi quando o padre a estava a chatear a dizer que se não socializasse com as mulheres beatas intriguistas religiosas, elas iriam pensar mal dela. Ela responde que as beatas têm apenas de se limitar a pensar, se ela toca bem o orgão da igreja ou não. Gostei da pinta da actriz nessa troca de palavras, e da reacção do padre.
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Re: Carnival of Souls (1962) - Herk Harvey

Post by Samwise »

Já tinha dado por este filme no site da Criterion (aquilo por lá assemelha-se um parque de diversões para cinéfilos, em que nunca nos cansamos de repetir as voltas no carrossel pato-) ), mas fui sempre deixando a visualização para segunda escolha, face a outras propostas mais aliciantes (pelo menos para mim).

Mas gostei imenso de ler este texto do Pedro - que penso que terá feito mais pela minha vontade do que o resto que li anteriormente. :-D Vai para a lista...
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«One is starved for Technicolor up there.» - Conductor 71 in A Matter of Life and Death

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